domingo, 26 de abril de 2009

Manhã de Domingo

Manhã de domingo tem cheiro de banana frita, sair de pijamas do quarto, olho em remela, ir para a sala e receber bom dia. Era meu vô (desculpem, nunca tive avô, apenas um bom e velho vô) quem fazia, um de seus bem poucos dotes culinários - mas tinha que ser domingo. Comia no mesmo pratinho velho de plástico de sabe-se lá quantos anos e cujas bordas sabe-se lá há quantos anos eu gostava de mordiscar. Banana caturra, adorava bem fritinha, quase queimada, já com aquele leve amargor nas extremidades e com muito açúcar e canela. Comia com felicidade. Ao fim, o fundo do prato estava besuntado numa gordura doce mas já não tão apetitosa. As manhãs de domingo também soavam a globo rural, quando a arroba era apenas uma unidade de medida de peso e as maiores mazelas do mundo, pulgões, vassouras-de-bruxa, ferrugem e outras pragas agrícolas (durante a semana era o Esqueleto). Coisas que não faziam parte do meu mundo senão como o meu mundo das manhãs de domingo. Ainda não tomava nem café com leite - demorei pra entender o sabor forte do café - mas nunca cansei de admirar o vô tomando seu café-com-leite caiçara, ou seja, café preto com farinha de mandioca. Sempre me oferecia, rindo, troçando do meu asco infantil - talvez lembrando, talvez ignorando, ter aprendido a tomar o café assim também na infância, quando o leite raramente dava o ar da graça. Avançando a manhã, o cheiro do domingo era do jornal, volumoso, de páginas enormes e cuja tinta grudava até nos olhos na mais ligeira lida. Nunca gostei das páginas de jornal, inclusive porque eram grandes demais pra eu conseguir dobrá-las (não consigo me lembrar porque motivos eu as desdobrava, mas com certeza era a curiosidade de saber que diabo diziam aquelas minúsculas letrinhas) e acabava que eu as deixava jogadas ou dobradas muito porcamente, o que sempre me rendia alguma reprimenda. É incrível dizer isso, mas manhã de domingo também tem o cheiro da cabeça do vô, que sempre muito voluntariamente sentava-se ao sofá e servia-me seu ralo cabelo como diversão. Fazia penteados, sendo o moicano o meu preferido, assim como o "bozo". Mas o que gostava mesmo era de puxar seus cabelos com força. Ele não sentia dor no couro cabeludo, aliás, não sentia nada, nem dor nem calor nem frio. Eu podia puxar com força, mas que tomasse cuidado pra não descolar seu couro cabeludo, dizia. Nunca acreditei nisso. Pra mim ele apenas gostava de ter seu neto sob a sua cacunda brincando com seu cabelo e suas orelhas (havia me esquecido delas). Logo o vô saía de casa, como aliás fez todos os dias até que um dia foi seu último. Enquanto isso eu brincava com meus bonequinhos, via as séries de domingo na tv, como macguyver ou simpsons (sempre odiei barrados no baile) ou jogava a fita de master system se alguma eu tivesse locado na sexta-feira. Quando o vô voltava, era hora de almoçar e era sempre macarrão. Assim acabavam as manhãs de domingo, que são vivas nas minhas lembranças e que me dão esperança e desejo de voltar a tê-las com tanta serenidade e poesia em tanta simplicidade. Talvez seja impossível fora da infância, mas quem sabe, ao menos se um dia tiver um neto as minhas costas e se ainda houver bananas caturras a fritar...

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Paraguaia


Não usar camisinha é fácil, foda mesmo é manter o celibato!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

De celebridade instantânea a macarrão instantêneo

Quando todos acham que a internet não pode mais render uma boa surpresa, aparece algo que prolonga a validade da rede. Na semana que passou o mundo conheceu a simpática gordinha de monocêlha Susan Boyle, que foi arremessada de sua prosaica vida num vilarejo do interior da Escócia para o monitor de mais de uma centena de milhões de pessoas no mundo todo. E a mulher realmente tem talento. Voz fenomenal, simplicidade e a música que canta no video que circula parece ter sido feito pra ela (é um trecho do musical Les Miserables, outro grande sucesso, adaptação da obra de Victor Hugo, falando sobre sonhos de juventude mortos pela vida.) Mas infelizmente o mundo que permite que esse fenômeno aconteça (tudo ocorreu num programa do tipo American Idol do Reino Unido (aliás, do mesmo produtor), ou o nosso Ídolos), que se descubra o talento monumental na feia embalagem (como tem sido sempre o tom das resenhas e comentários a respeito) é o mundo que se apropriará destrutivamente desta simples mulher. Grandes estrelas midiáticas não pertencem a si próprias, e isso é ainda mais verdade para estrelas instantâneas. Enquanto o mundo dá olá à Susan Boyle, aquela Susan Boyle dá adeus ao mundo.

Isso não é apenas - afinal talvez também o seja - um olhar essencialista. O que encantou a mim e ao mundo não foi a simplesmente o talento musical da mulher exibido no video. Hoje, o talento está por todo lado. Aliás, já há talento de sobra nas interpretes da mesma música na Broadway. O que nos encantou da Susan Boyle foi aquilo que não vimos - mas imaginamos. A inocência já há tanto perdida, os desejos, a imposição da vida ordinária sobre nossos ridículos sonhos, a resignação, a persistência e enfim, a realização. Foi também a mensagem que nos chegou de que em algum lugar no mundo - talvez saindo da boca menos esperada - ainda existe algo que corresponde ao mesmo tempo aos nossos desejos de simplicidade, de originalidade, de humildade, de puros sentimentos transformados em arte; e também aos exigentes parâmetros de qualidade do nosso mundo (vamos lembrar das milhões de pessoas igualmente simples humilhadas neste e em programas congeneres por não atenderem a este elevado padrão de qualidade), parâmetros opressivamente técnicos. Tudo isso se acabará cedo ou tarde, e não veremos mais em Susan a mulher (e os sonhos, a inocência, etc) que vimos em I Dreamed A Dream. Sem dúvida podemos dizer que o sonho está se realizando. É bem possível que Susan seja feliz. Quanto a nós, continuaremos pagando nosso suplício eterno: cavar fundo a alma humana, encontrar o mais precioso diamante apenas pelo prazer de desfazê-lo em mil pedaços. Somos doentes. Se ainda duviam, leiam:

"Simon [produtor do Britain's Got Talent, o programa de TV] pode ver o potencial lucrativo de Susan. Ele não vislumbra apenas o lançamento de um disco dela na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas também um filme e produtos de merchandising", confidenciou ao jornal "Daily Star" uma fonte próxima a Cowell.


http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2009/04/22/susan-boyle-pode-ter-sua-vida-transformada-em-filme-755375125.asp

domingo, 19 de abril de 2009

Ouvidos Caninos

Não sou Cassandra, mas tenho uma trágica qualidade: ouvidos caninos. Não, eu não tenho o maldito ouvido absoluto, que sinto vontade de duvidar existir, e minhas habilidades musicais são pífias. Pergunte-me o que é um sol maior e te darei uma resposta astronômica. Meus ouvidos caninos, e olhe, isso é uma expressão que inventei pra mim (embora possa e deva já ter sido inventada por outrem), são uma desagradável percepção dos sons. Especialmente sons miúdos, altas frequências. Desde criança consigo dizer se há uma televisão ligada em casa. Nas madrugadas mais tranquilas, sabia dizer se havia alguma nos apartamentos vizinhos. Não graceje, não falo de ouvir o som dos autofalantes da televisão, pois eu sei da televisão mesmo quando o volume está baixo demais para ser ouvido ou mesmo mudo. Simplesmente ouço o som que a televisão emite quando ligada. Som de aparelho eletrônico ligado, um piiii constante e irritante. Além da tv, há também aparelhos de ar-condicionado, computadores, e, talvez os campeões, nobreaks. Esses sons, que a maioria aprendeu a chamar de silêncio, pra mim compõe a sinfonia da tortura, em seu crescendo de intrusão. Para você ter idéia do tamanho do desconforto que sinto com esses sons, imagine que pra mim, o prazer de desligar uma televisão é comparável ao de tirar os calçados depois de um longo dia. Meus ouvidos gozam. Mas os momentos de prazer são raros. A maior parte do tempo, passo em busca de um silêncio quimérico, um desejo erótico pela ausência de som que agraciaria minha alma. Mas meus ouvidos caninos são tristes por saberem que, em vida, o silêncio é impossível. Por isso, quando quero paz, vou de canto a canto, procurando o melhor recanto para os ouvidos. Então, se algum dia você me surpreender dentro do guarda-roupas, não se assuste, eu estarei apenas lendo.

sábado, 18 de abril de 2009

O Ébrio de hoje

Eu juro que vi isso hoje, o que não significa que tenha acontecido.

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Às 5 da tarde, três homens sentados à mesa do bar. Um deles tem a palavra. Ostenta o pior cabelo que alguém pode ter, pior até que não ter cabelo: um corte ao estilo Ney Latorraca. Bigode acinzentado, expressão séria. Os outros dois ouvem com atenção quando ele diz

Você sabe o que é chegar aos sessenta e três...

Pausa dramática. O copo vai à boca e nela escorre um suave gole. Seca os lábios. A audiência, à qual nesse momento somava-se eu, apreensiva. Via amargura naquela frase, quem sabe uma vida de agústias e desejos incompletos, sonhos humildes e irrealizáveis, solidão amarga. Típico desabafo de um ébrio cujo único desejo que lhe resta é ter em seu derrareiro abrigo apenas outros ébrios loucos a chorar e a desabafar. Mas o senhor de olhar impenetrável, continuou

... dando duas por semana?

terça-feira, 14 de abril de 2009

O Marujo

A revista piauí promove um concuso literário mensal. É dada uma frase e você deve compor um texto em que a frase aparareça com algum sentido. No mês passado concorri com esse texto.

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O Marujo

Era fim de tarde e os últimos fiapos da luz vermelha do crepúsculo já se iam perdendo. O homem rude de expressão fechada entrou em sua casa e, executando o hábito adquirido há apenas um ano com a morosidade de quem o fez há trinta, passou um café forte e o tomou sem açúcar. Aposentado fisicamente por conta de uma hérnia de disco e moralmente pelo fato disso acontecer enquanto ainda possui braços volumosos e fortes, passa os dias remoendo as memórias do que sem querer foi sua vida.

Viajou o mundo todo, teve tantas mulheres quantas foram as noites solitárias em terras estranhas. De algumas destas, traz tatuagens, de outras, cicatrizes. Lembra-se de países que o mundo já se esqueceu. Não se sabe se apesar ou por conta disso, e a despeito do que povoa a imaginação dos sonhadores, nunca gostou de lugar algum que em sua existência peripatética tivesse conhecido. O único lugar de que gostava era exatamente o único lugar de onde fugira e pra onde prometeu jamais voltar. Réu confesso, entregou-se ao mundo como castigo auto-infligido. Pelo menos foi o que acreditou muito tempo atrás, mas durante três quartos de sua vida pensara toda noite, com uma religiosidade que não tem o maior dos cristãos em suas preces, que não passava de mais um ser feito desse repugnante medo e que tem a vida como algo que vale mais que a dignidade. Somente agora que as luzes dessa existência começam a fraquejar é que se dá conta de que a culpa e a vergonha de tê-la salvo fizeram-no enterrá-la fundo na culpa e na vergonha de nela sentir algum prazer.

Era esse o homem que sentava sozinho para tomar café amargo, pois havia vivido a vida inteira sozinho e apenas amargo é que poderia morrer. Decidido que estava a utilizar este tempo último que lhe restara simultaneamente com e sem saúde – o que só poderia ser o poder divino já anunciando que sua sentença estava lavrada – para pensar sobre si mesmo, desejava apenas matar o tempo antes que o tempo desse o troco. E se pensava em si não era por ter-se como a única pessoa que valesse o pensamento, mas por não ter conhecido ninguém mais. Abriu a mesma pequena mala de couro marrom com presilhas de cobre que usara em sua fuga quarenta anos atrás e a descobriu mais vazia que então. Encontrou fotografias de mulheres que talvez tivessem tido pra ele alguma importância. Lamentou não lembrar de nenhuma. Abriu algumas cartas e iniciou sua leitura, mas fazê-lo era como abrir um livro nunca lido em uma página qualquer: falava-se sobre pessoas desconhecidas com seus sentimentos desconhecidos. Viu um envelope velho, ainda lacrado e sem selo algum. Era certamente a mais velha das cartas. A letra parecia conhecida, mas não pôde se lembrar de quem era. Iniciou a leitura. Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Parou. Tomou mais um gole do café que já estava frio. Aconteceu, então, que pela primeira vez desde a esquecida infância, este parricida chorou.