quinta-feira, 25 de junho de 2009

Saber muito ser ignorante


I
Memórias

Desde pelo menos a minha mais remota lembrança, tenho uma certa compulsão por aprender. Tinha pressa de aprender a ler e escrever, coisa que “só” aprendi aos três anos e meio; tinha pressa de aprender a amarrar os cadarços, mesmo que mamãe sempre me fizesse desfilar com portentosas sandálias de couro; tinha pressa de aprender a ver as horas do ponteiro, ainda que fosse demorar muito pra eu compreender o significado do tempo. Aos cinco, aprendi a jogar xadrez vendo meu tio e meu avô jogarem. O mesmo avô me ensinou a jogar baralho nessa mesma época e me fez entrar, bem poucos anos depois, na roda oficial do pife das tardes de sábado no Sêo Dinancor. Cheio de curiosidade, pedi à minha mãe que me ensinasse a fazer alguns pontos de tricot e alguma coisa de bordado, saberes dos quais fui desistindo de mansinho, sem fazer alarde nem chamar a atenção para meu evidente insucesso. Também a meu pedido, foi ela quem me ensinou a costurar na máquina e a fazer bolos (o primeiro, se me lembro bem, foi aos 11). Com 10 anos já tinha aberto alguns brinquedos suposta ou verdadeiramente estragados e suposta ou verdadeiramente os consertei, já havia fechado uma porção de jogos de vídeo-game e, por conta disso, dominava rudimentos do inglês.

Mas como nem só a casa é local de aprendizado, também direcionei minha ânsia por conhecer à escola. Falo isso frequentemente nas rodas de amigos e com frequência soa como piada, mas me lembro perfeitamente do momento exato em que aprendi alguns pontos elementares do meu currículo escolar. A revolução industrial foi na quarta-série, numa aula de estudos sociais. A expressão apareceu na terceira linha do primeiro terço do quadro (“lecionar é dividir o quadro em três”). Eu sentava na primeira ou segunda fileira a partir da porta de entrada, provavelmente na terceira carteira. Acho que foi numa terça. O evolucionismo darwinista foi em casa, eu tinha 11 anos e lia o livro de ciências (cuja capa era dum verde musgo contaminante) na cama de cima do beliche do meu quarto. A janela estava aberta, era uma tarde de tempo bom. Em ambos os casos senti uma sensação maravilhosa, o mundo se descortinando pra mim, me convidando para entrar, dar uma voltinha, conhecê-lo. Coisas que eu não podia ver, um protozoário, a Inglaterra do século XVIII, mas que agora eu sabia que existiam.

O caminho para o conhecimento nem sempre foi fácil, entretanto. Lembro de quantas coisas entraram no meu caderno sem eu me dar conta. Aparentemente já estavam ali há algum tempo, e quando me dava conta de suas existências olhava para os lados, como quem pergunta: ela já ensinou isso?, mas com vergonha acabava não revelando minha ignorância. Na maioria das vezes, tratava-se de uma aula que eu havia perdido ou por tê-la faltado, ou por ser um faltante presente. No segundo grau tornaram-se famosas minhas viagens de 10, 15 minutos, nos quais meus olhos se perdiam no horizonte e meu contato com o mundo material se resumia a um quase-nada. Uma dessas lições perdidas foi o substantivo. Que diabos é um substantivo? Sabia o que era um verbo, um adjetivo, um advérbio e até um adjunto adnominal se tornou familiar pra mim, mas substantivo, que diabos. Por exclusão, deduzi que substantivo era aquilo que não era nenhuma das outras coisas, ou seja, ao mesmo tempo é tudo e é nada. Um dia me deram a dica de que substantivo é aquilo que se pode tocar. Era falha, já que alma, vida e morte também são substantivos, mas vocês sabem, uma dica falsa nos faz perder muito tempo.

II
Devaneios

Conhecimento é poder. Essa máxima, tão verdadeira, tão enganosa. Precisei crescer pra aprender isso. Não foi nada fácil e tenho certeza que ainda não aprendi em todas as dimensões esta lição. Afinal de contas, saber qualquer coisa que seja te abre alguma porta. O sujeito que sabe cozinhar com maestria pode se dar ao luxo de posições políticas heterodoxas e ainda assim terá a casa frequentada. Conhecer os caminhos para o sucesso financeiro te garante uma vida materialmente confortável. Dominar o conhecimento produzido por uma área do saber te garante, no mínimo, um título e, quem sabe, algum reconhecimento no meio. Mas esta é apenas a face verdadeira do poder do conhecimento. Afinal, de que vale, por exemplo, ter a casa frequentada e viver em solidão? Ou dormir em lençóis da mais pura seda e nela sofrer a angústia de não poder comprar uma vida nova? Ou então ter os louros do reconhecimento por algo que você mesmo não dá importância? O conhecimento só garante a si mesmo.

Na verdade, nem isso. Quem realmente sente prazer em aprender coisas novas – e nesse momento lembrei dos filósofos e de como devem rir lendo esta minha filosofia de boteco – conhece a dinâmica em que se dá esse processo. Aprender é como caminhar num brejo, ou na expressão já consagrada, num terreno movediço. Você dá um passo adiante, progride, muda de substância, acha que evoluiu, que está seguro, mas em pouco tempo começa a afundar e precisa dar um novo passo e mais um e mais um. Só que esse brejo (ou esse terreno) é infinito. Não há margem segura e só se tem duas escolhas possíveis. Parar e afundar ou dar um passo mais e começar a afundar meio metro adiante, e adiante, e adiante! Isso significa que quando você para para olhar para (travalíngua) trás e ver o caminho que já percorreu, admirar a paisagem da sua sabedoria, você está afundando nela. Se demorar, é possível que não consiga mais se mover, então, keep walking.

Mais que paradoxal, é trágico. Quando está aberto ao novo, você só aprende alguma coisa para desaprender no instante seguinte (e vamos tirar dos olhos a lama da metáfora). O saber é feito dessa matéria etérea, volátil, inconstante. É, por sua natureza, pesado como chumbo mas se desfaz com o ar, se você permite arejá-lo. Infelizmente isso não é muito comum e vê-se muitos quixotes tristes que saem por aí montados em seus velhos pangarés de conhecimento, iluminados pela luz fraca e opaca das histórias de cavalaria de outros tempos. E isso não é difícil de acontecer. Ouso dizer que, em alguma medida, acontece com todos. Quem não enche o peito ao dizer “EU SEI”?

Sempre me fez, e agora me faz ainda mais sentido a imagem do sábio silencioso, a do silêncio como resposta. É um ideal, claro, que representa a humildade que devemos ter diante do conhecimento das coisas do mundo, a prostração diante da nossa insignificância diante do tudo (em seu lato sensu). Por isso, busco cada vez menos usar o tom peremptório, definitivo. Escrever suas convicções na pedra, pra quê? Para depois, de picareta em punho, sair destruindo o que foi gravado? Ou é para não precisar jamais ter novas convicções? Parafraseando o que Eduardo Galeano falou sobre a utopia, acho que o conhecimento não serve pra nada a não ser para te fazer caminhar tentando (sem sucesso) alcançá-lo em definitivo. É a sombra na caverna, é o rabo do cachorro.

Enfim, são só devaneios e a essa altura abandono o tema que me motivou a escrever este texto sem nem ao menos citá-lo. Sim, exatamente, quando abri o editor de texto planejava comentar sobre algo que venho ruminando há alguns dias, inquietação resultante da leitura de um livro. Vou abortar o tema com a promessa de retomá-lo muito em breve, esforçando-me para não ser prolixo. Ou melhor, é uma quase promessa. Vai que amanhã acordo e dessa reflexão só encontro a lembrança?

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Poesia de Alberto Caeiro

Fiquem com ele, que sabia das cousas bem mais do que sei eu.


Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O café-com-leite que tranquiliza


A imagem da serenidade pra mim é um copo de café-com-leite. Café-com-leite quente, mas não pelando, cheio até a borda no copo de requeijão ou americano. Bastante açúcar, nem muito claro, nem muito escuro. Café-com-leite às cinco e meia da tarde, sem pressa, mas sem preguiça e sem cansaço. Nada de cappuccino, nem espresso corto nem cem-por-cento arábica. Café do mercado do bairro, o que estiver em conta, e leite de pacotinho, tipo C. Solúvel, nem pensar. Sob o sol ainda firme se for verão, sob o laranjal do lusco-fusco se for primavera, sob o céu cor de cimento se for outono, sob a penumbra do frio se for inverno. Acompanhado de pão com margarina e só, sem modéstia, sem pretensão. O café-com-leite de quem vai vivendo, sem buscar novos sabores, sem sofrer pelo que não pode, sem querer o que não conhece. Quando eu flerto com o cotidiano e miro na vizinhança uma pessoa tomando assim no fim da tarde o seu café-com-leite, sem fazer dele uma refeição faustosa, sem também por isso deixar de tomá-lo, alimentando-se porque é animal, de café-com-leite porque é cultural, sinto-me contagiado pela tranquilidade. Sim, pois num mundo que não é nem anterior nem posterior à cafeína e à tecnologia nutricional, mas que corre alheio a estas, como que no seu fusca velho mas original e que não sente a menor vontade de olhar para o lado quando para no sinal pra ver o carro que lá está; nesse mundo que não tem respostas porque não faz perguntas, o café-com-leite pode ter uma agradável ação ansiolítica.