terça-feira, 23 de novembro de 2010

Os meus amigos

Eu e meus amigos tivemos uma educação precária, somos trabalhadores e os que ainda não passaram, beiram os 30. Pra quem não sabe o que é nascer pobre numa cidade pequena e esquecida, somos derrotados. Aqueles cujo único esforço foi aproveitar as oportunidades surgidas talvez ignorem como é a angústia dos que nunca tiveram vez. Músicos, escritores, pesquisadores, artistas - nunca serão. Pelo menos não se tudo correr dentro da normalidade. Mas nós somos teimosos. A alimentar a frustração da realidade, preferimos o um dia quem sabe? Com alguns teci laços de fraternidade tão fortes que nos percebemos dependentes, complementares. Com aqueles já não tão próximos no dia-a-dia, a sensação de completude, no encontro, é ainda maior. De vez em quando um deles me liga pedindo um pouco de esperança. É a coisa que eu faço com mais prazer na vida. Porque toda a esperança que eu tenho é a esperança que eu dou pros meus amigos.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Terra, de Sebastião Salgado

Está esgotado e nos sebos, quando encontrado, pede-se já bem pra lá dos 100 reais. Deveria ser gratuito. Universal. Adotado nas escolas. De um só golpe, trabalharia a educação visual pra dar alguma qualidade ao olhar dessa geração extensivamente fotográfica, e a história e sociologia do Brasil. Está tudo lá: etnocídio, latifúndio, êxodo rural, estado, oligarquia, sem terras, opressão e, por que não?, esperança. Tudo o que importa saber. Sai Carlos Magno, com todo respeito, entra Eldorado dos Carajás, com toda violência. Sai oração coordenada assindética, entra José Saramago.

Serra Pelada, Pará, 1986

Ainda não consegui aceitar que as gerações mais recentes que a minha, que é apática, sejam conservadoras. Se com 16, 17 anos, a vida inteira por fazer, uma pessoa não anseia por justiça, o que ela vai querer aos 40, com emprego, casa, carro e filhos? Por que o argumento dilma-não-pois-queremos-igualdade perde tão feio, entre os jovens, para o dilma-não-pois-é-bandida-terrorista? Quando isso acontece, estou muito perto de dizer que todos os anos de ensino de história falharam. Pois tanto bláblábá deveria servir, no mínimo, pra que as pessoas saibam que cada acontecimento histórico só faz sentido dentro de seu contexto.

Sergipe, 1996

Sorvendo Terra com todo o cuidado, lendo cada legenda, observando com atenção cada foto, sinto um misto de nó na garganta, vergonha e blues. Por ser brasileiro, por fazer muito pouco para acabar com o que está ali posto, por ver que, se depender dos mais novos, far-se-á cada vez menos. A sensação que fica é que é um livro que não se repetirá, mas não pela extinção de seu objeto, a luta pela terra, nem pela extinção dos bons fotógrafos, mas pela extinção da sensibilidade que une técnica e tragédia numa obra de arte prenhe de poder transformador.

Sergipe, 1996

Pra pisar fundo nesse sentimento de degenerescência temporal - que, espero, esteja errado - vai um video da época do lançamento do livro. O bufão Jô Soares entrevistando numa só noite, de uma só vez, um ao lado do outro, o Sebastião Salgado, o José Saramago e o Chico Buarque de Holanda. Convido quem não entendeu a piada a conferir os programas atuais do entrevistador.


quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um sonho

Sempre quis ter um bar. Manter bigode, cultivar barriga, arregaçar as mangas e viver com um paninho sujo no ombro, sempre pronto pra dar uma limpada não muito generosa no que quer que seja. Já trabalhei em multinacional, quase engravatado, dava conselhos, ordens, recebidos e tinha rês-estagiários. Aprendi a desossar codorna. Na juventude fui preso, levei porrada da polícia e panfletei pelo fim de alguma coisa. Não cheguei a ser infeliz, mas não tinha lá muito tesão. Por isso - ou a despeito disso - me casei três vezes e não tive filhos. Nas separações, dei mais do que pediram. Não queria construir uma catedral no meio do brejo. Tentei conhecer o mundo, mas fui assaltado na Nicarágua e passei a achar a idéia ridícula e cansativa. Sempre dormi vendo a national geographic e, de mais a mais, não queria ter um café em Paris. Meu sonho, o único, era um bar com expositor de fórmica, vina em conserva e duas mesas velhas de sinuca. Eu serviria cervejas sem sorrisos nem grosserias. 75 centavos a ficha. Não faria promoções nem descontos. A música do rádio. Palito de dente. Comprei um bar falido e fui feliz por não ter filhos pra me acusarem de ter desperdiçado a herança deles. Não reformei nada. Não abri. Passei seis meses tomando o estoque, comendo as vinas, as cebolas em conserva e depois os amendoins. Passava os dias passando o pano nas mesas. Só servia a mim. Quando acabaram as balas do troco, não aguentei e saí. Que derrota, não morrer. Estou pensando em abrir.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pervinha

Sou uma putinha de bairro. Aquela que você vê andando por aí de shortinho e top. Tenho a pele encardida e faço o máximo que posso com meu cabelo. Minha clientela não é exigente. Quando é alguém de fora, perde tempo olhando, tentando descobrir se sou puta ou andarilha mendiga maltrapilha. Demora acostumar o olho, mas quando acham a carne defumada na fumaça do asfalto que eu habito, querem me carregar na boca prum canto escondido, feito uns vira-latas. Os homens me curram com força as derrotas de suas vidas. Sou eu que engulo a porra da miséria da humanidade. Quando me penetram, é um mundo que eu recebo de pernas abertas. Quando gemem, são palavras de ordem que eu libero; quando gritam, é a revolução que não aconteceu. Sem mim, o mundo que me despreza não existiria. Faço parte do rol de coisas e seres misturados que constroem seu próprio infortúnio - que os outros chamam de civilização. Estamos do começo ao fim. Plantamos a semente da comida que os alimenta e recolhemos a merda dos dejetos que despejam. Somos invisíveis porque necessários demais para que o orgulho nos aceite. Eu aceito. O preço das escolhas que não fiz nas oportunidades que não tive. Me divirto mais que as outras. Mais que a senhora decente que recata a puta que a habita com o hábito da virtude; essa puta que o marido procura nas ruas sujas em que me encontra. Posso dançar o que quiser, beber o quanto quiser daquilo que eu quiser. Não preciso me importar com as aparências. Meu jogo é limpo, eu sei o que eles querem, eles sabem o que eu dou. Nunca me deram um livro, já ganhei perfume - acho que eu fedia. Nunca me deram flores, já ganhei uns socos - acharam que eu merecia. Nunca recebi uma proposta de casamento, já perdi a conta das orgias - todos achamos bem mais gostoso. Não alimentem ilusões, eu sou o útero do mundo. Vinde a mim, os fodidos. Trabalhadores do mundo, fodei-me.

terça-feira, 18 de maio de 2010

De quando me descobri morto - Ato único

Após a ducentésima madrugada de trabalho na mina, descobri que estava morto. Se ainda me viam andar, falar e extrair carvão das paredes infinitas é porque, uma vez imersos os homens na escuridão mal iluminada, as sombras encarregam-se de protagonizar a existência. É assim, de tal forma, que não importa que morram todos - e estavam todos mortos, só então descobri - as sombras continuarão dando movimento e som ao lugar. E os homens que feitos sombra mexem seus corpos etéreos, constituídos de ausência, da luz que não chega a um certo espaço, num certo tempo, não imaginam que não vivem, porque a própria capacidade de imaginar é faculdade exclusiva dos viventes. Assim, tampouco eu vislumbrava que a morte me atacara sem que eu me apercebesse. Foi muito por acaso, ou fruto de uma maquinação muito diabólica, que me dei conta de meu estado. Aconteceu ao fim daquela ducentésima noite incompleta - só quem vê a madrugada (que é uma só) partir sabe que ela se vai sempre sem sucesso, derrotada, incapaz de impor-se sobre os dias (esses, sempre outros) que vêm sempre sorrateiros; quem dorme vive a ilusão da ordem, da sequência, e ignora a batalha que se trava no silêncio. Mas lá estava eu, caminhando para o portão de evacuação. Ao sair da mina tive os olhos de morcego perfurados pela jovem luz da manhã de verão que, sempre apressada, chega antes que os todos. Eu não tinha olhos, tinha apenas a certeza de não tê-los. Mas o que me doía na face era real como o sol do horizonte, deveria estar lá. Levei num impulso as mãos a esses olhos e dei-me com mãos que eram minhas e que não eram pás, picaretas ou carrinhos. Havia mãos, e nelas, braços. Com ambos segui o reconhecimento de um meu corpo alheio. Apalpei-me o ventre como uma criança aperta um animal de pelúcia investigando seu interior. Eu deveria ter vísceras, pois doíam ao toque insensível de minerador. Senti que era ar e não densa poeira carbonífera que me entrava pelas narinas e que, em mim, descia a um pulmão incansável, embora esgotado. Um coração começou a bater em meu peito e dali para artérias e veias e cada terminação nervosa de meu corpo entrou como em estado de euforia e pude sentir cada fluxo, do líquido biliar à meiose da espermatogênese; das sinapses ao ácido úrico acumulando na bexiga. Saindo das trevas, descobri um corpo inquieto. Beirava o insuportável essa plena sensação corporal pois era como se, ao encontrá-lo, tivesse assumido em minúcias o controle de toda função fisiológica. Nada era despropósito. Se esquecesse de batê-lo, o coração pararia. Eu era todo corpo, e quando você é todo corpo você está morto; pois o que é que enterram nas covas, nas sepulturas, nas minas?

sexta-feira, 5 de março de 2010


Sou um saco de lágrimas numa casa em mudança. Arrastado prum canto, arrastado pra outro, sigo firme e bem costurado, mas todo disforme. Me seguram de qualquer jeito, caio pro lado, me aparam com a perna, me chutam, arrastam de novo com o pé, teimoso, deixo rastro. Minha substância é uma só. Tenho pena. Do mundo, das pessoas, de quem foi e ficou. Pra quem sofre, apanha, bate, olha e grita que as coisas são como são e que o certo é o certo; pra quem tem medo, tem ódio, tem sonhos, esperança e pra quem não tem nada disso, pra quem a vida só reservou o banco mais desconfortável, a rasteireza, a humilhação. Alguém me joga no caminhão, num canto do chão pra não sujar o mobiliário. Só lamento. A certeza de um mundo sólido, do bem e do mal, da verdade, da segurança; em cada um, um tijolinho de ilusão. Em todos juntos, a grande muralha da indiferença e do destino. Colocaram alguma coisa pesada sobre mim. Vou romper, vou romper. Não tem problema: a muralha é impermeável, tudo está seguro.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A Carta

Enquanto enrolava os miolos de pão que sobravam pela mesa, o velho atirava seu olhar para um canto qualquer, a fim de perdê-lo, e dizia, com a voz serena que durou uma vida para conseguir alcançar:

Passei muito tempo da minha pouca vida fazendo muitas coisas que se revelaram poucas. Tudo que ganhei foi um sentimento de vastidão desabitada.

À sua frente, eu o devorava. Seus olhos amarelos, a pele gasta, aquelas palavras que pareciam falsas de tão sinceras. Nada nele me parecia fortuito. Por isso, silenciava.

Agora, no crepúsculo da minha existência, quando é ridícula a própria idéia de mudar o destino, sinto-me como alguém que acordou tendo uma só tarefa para o dia mas que, ao levantar as pernas cansadas e deitar a cabeça ao travesseiro à noite, dá-se conta de que só não fez aquilo que devia, aquilo que queria.

Acabaram os miolos, eram já todos bolinhas. O velho pareceu dar-se conta de que, se não emendasse logo um desfecho, seu desabafo pareceria esconder algum ensinamento moral e ensinamentos morais, àquela hora da vida, era tudo o que mais queria que não existissem. Apontou agora seus olhos para os meus, que quiseram fugir das órbitas com a violência do olhar.

E você, filho da puta, um dia vai perceber a mesma coisa. Reconheço um cagado no mundo no escuro. Somos uma irmandade. Espero que não demore pra descobrir que se existe um sentido nisso tudo, ele deve estar amortecido pelo álcool e outros vícios.

Continuei ali, vendo o desespero e a solidão do velho. Ele continuou falando. Passou a vida lutando contra o silêncio e agora sofria por ter descoberto que perderia. Ali aprendi a calar-me. Lá se foram cinquenta anos de serena sobriedade. Hoje, no crepúsculo da minha existência, sufoca-me este sentimento de superpovoamento, de carregar no peito, o mundo. Não quero levar para o túmulo o peso das possibilidades. Por isso escrevo esta carta para ninguém, pois ninguém merece lê-la.