sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pervinha

Sou uma putinha de bairro. Aquela que você vê andando por aí de shortinho e top. Tenho a pele encardida e faço o máximo que posso com meu cabelo. Minha clientela não é exigente. Quando é alguém de fora, perde tempo olhando, tentando descobrir se sou puta ou andarilha mendiga maltrapilha. Demora acostumar o olho, mas quando acham a carne defumada na fumaça do asfalto que eu habito, querem me carregar na boca prum canto escondido, feito uns vira-latas. Os homens me curram com força as derrotas de suas vidas. Sou eu que engulo a porra da miséria da humanidade. Quando me penetram, é um mundo que eu recebo de pernas abertas. Quando gemem, são palavras de ordem que eu libero; quando gritam, é a revolução que não aconteceu. Sem mim, o mundo que me despreza não existiria. Faço parte do rol de coisas e seres misturados que constroem seu próprio infortúnio - que os outros chamam de civilização. Estamos do começo ao fim. Plantamos a semente da comida que os alimenta e recolhemos a merda dos dejetos que despejam. Somos invisíveis porque necessários demais para que o orgulho nos aceite. Eu aceito. O preço das escolhas que não fiz nas oportunidades que não tive. Me divirto mais que as outras. Mais que a senhora decente que recata a puta que a habita com o hábito da virtude; essa puta que o marido procura nas ruas sujas em que me encontra. Posso dançar o que quiser, beber o quanto quiser daquilo que eu quiser. Não preciso me importar com as aparências. Meu jogo é limpo, eu sei o que eles querem, eles sabem o que eu dou. Nunca me deram um livro, já ganhei perfume - acho que eu fedia. Nunca me deram flores, já ganhei uns socos - acharam que eu merecia. Nunca recebi uma proposta de casamento, já perdi a conta das orgias - todos achamos bem mais gostoso. Não alimentem ilusões, eu sou o útero do mundo. Vinde a mim, os fodidos. Trabalhadores do mundo, fodei-me.

terça-feira, 18 de maio de 2010

De quando me descobri morto - Ato único

Após a ducentésima madrugada de trabalho na mina, descobri que estava morto. Se ainda me viam andar, falar e extrair carvão das paredes infinitas é porque, uma vez imersos os homens na escuridão mal iluminada, as sombras encarregam-se de protagonizar a existência. É assim, de tal forma, que não importa que morram todos - e estavam todos mortos, só então descobri - as sombras continuarão dando movimento e som ao lugar. E os homens que feitos sombra mexem seus corpos etéreos, constituídos de ausência, da luz que não chega a um certo espaço, num certo tempo, não imaginam que não vivem, porque a própria capacidade de imaginar é faculdade exclusiva dos viventes. Assim, tampouco eu vislumbrava que a morte me atacara sem que eu me apercebesse. Foi muito por acaso, ou fruto de uma maquinação muito diabólica, que me dei conta de meu estado. Aconteceu ao fim daquela ducentésima noite incompleta - só quem vê a madrugada (que é uma só) partir sabe que ela se vai sempre sem sucesso, derrotada, incapaz de impor-se sobre os dias (esses, sempre outros) que vêm sempre sorrateiros; quem dorme vive a ilusão da ordem, da sequência, e ignora a batalha que se trava no silêncio. Mas lá estava eu, caminhando para o portão de evacuação. Ao sair da mina tive os olhos de morcego perfurados pela jovem luz da manhã de verão que, sempre apressada, chega antes que os todos. Eu não tinha olhos, tinha apenas a certeza de não tê-los. Mas o que me doía na face era real como o sol do horizonte, deveria estar lá. Levei num impulso as mãos a esses olhos e dei-me com mãos que eram minhas e que não eram pás, picaretas ou carrinhos. Havia mãos, e nelas, braços. Com ambos segui o reconhecimento de um meu corpo alheio. Apalpei-me o ventre como uma criança aperta um animal de pelúcia investigando seu interior. Eu deveria ter vísceras, pois doíam ao toque insensível de minerador. Senti que era ar e não densa poeira carbonífera que me entrava pelas narinas e que, em mim, descia a um pulmão incansável, embora esgotado. Um coração começou a bater em meu peito e dali para artérias e veias e cada terminação nervosa de meu corpo entrou como em estado de euforia e pude sentir cada fluxo, do líquido biliar à meiose da espermatogênese; das sinapses ao ácido úrico acumulando na bexiga. Saindo das trevas, descobri um corpo inquieto. Beirava o insuportável essa plena sensação corporal pois era como se, ao encontrá-lo, tivesse assumido em minúcias o controle de toda função fisiológica. Nada era despropósito. Se esquecesse de batê-lo, o coração pararia. Eu era todo corpo, e quando você é todo corpo você está morto; pois o que é que enterram nas covas, nas sepulturas, nas minas?