segunda-feira, 17 de dezembro de 2012
Sem encanto
A história se repete como tragédia e depois como farsa. É o que dizem que Marx disse. Pro resto da tua vida, as feijoadas serão mais ralas, os natais menos esperados, as viagens mais enfadonhas, as festas mais repetitivas, as cervejas mais empapuçantes, as surpresas menos surpreendentes, as músicas mais obscenas, chega um dia que parece que todos os strogonoffs do planeta são feitos de acém. Mas você não desiste. Vai buscar a experiência perdida no delírio esnobe do consumo de alto padrão ou na ideação bonselvageana da originalidade esquecida. Feijoada gourmet ou na comunidade, acompanhada do verdadeiro samba de raíz (nada desses pagodes atuais). Mochilão pelas entranhas da América do Sul ou réveillon em Paris. Aí você se cansa dessa busca insólita e vai procurar novas experiências. Budismo, bicicleta, aeromodelismo, bronzeamento artificial, montanhismo, mandarim, fotografia, cupcake, sul de Minas, HBO, android, rivotril, prozac, fluoxetina... E então a busca da experiência se transforma em experiência da busca. Você não pensa mais no que procura. Você apenas procura. Sociedade quente. Império do devir. Que grande arapuca.
domingo, 28 de outubro de 2012
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Adorável Iconoclasta
Lá vem o contador de histórias. Muitas pessoas lembrando os 15 anos da morte do Renato Russo, no facebook, hoje. Felizmente passamos pela moda de criticar o Renato Russo e a Legião Urbana pela superficialidade das letras, pela simplicidade dos arranjos musicais, por ter "criticado o sistema e participado dele" e até pela sexualidade do Renato Russo (ou melhor, gente pra se preocupar com isso sempre haverá, infelizmente). Foi uma espécie de revolta juvenil contra um pai incompreendido. O tipo de revolta que o RR sentiu como poucos e poetizou como ninguém, no Brasil. Felizmente agora, com o tempo passado, estamos em posição de olhar o significado da obra que foi não apenas seu trabalho musical e poético, mas a relação deste com a trajetória do RR na cultura popular juvenil brasileira. Digo isso porque a importância do RR não se mede pela qualidade das letras ou pela quantidade de discos vendidos. É por tudo isso, mas é por mais. Foi a maneira como ele, pessoa, despedaçou a imagem do rockstar altivo e resoluto - e, em geral, banal e alienado - que dominava as rádios de então. RR contaminou de incerteza e hesitação a cena de sexo e diversão que foi o rock brasileiro dos anos 80, o que o colocou numa posição que, conforme o tempo passa, o separa cada vez mais dos seus congêneres contemporâneos. Percebam que estou falando da pessoa do RR e não das suas composições. Músicas reflexivas e sensíveis muitos cantaram. Camila, do Nenhum de Nós, é uma música linda sobre violência contra a mulher, mas o que ela diz sobre o Thedy Corrêa? Thedy o quê? Se eu preciso da Wikipédia pra buscar o nome da pessoa, acho que a resposta já está dada.
O Renato Manfredini Junior forneceu uma imagem de fraqueza pra milhões de pessoas. Jovens. E isso foi maravilhoso. Ninguém mais precisava se sentir um idiota por ter medos, angústias, revoltas, incertezas. Nosso herói era um fraco e era isso que fazia dele um herói. Renato Russo foi o modelo de fraqueza através do qual não uma, mas duas ou três gerações (por enquanto!) conseguiram modular seus sentimentos de uma forma que não fosse autodestrutiva nem humilhante. Ele mostrou que a fraqueza faz parte da vida e que ela deve ser encarada, e não mascarada ou entorpecida. Não uma auto-ajuda inócua que diz "você pode", mas uma psicoterapia que te diz "talvez eu não consiga, mas isso não me diminui". Talvez pra alguns isso possa parecer uma mensagem conformista. Talvez praqueles que nunca se sentiram fracos - ou nunca admitiram isso. Renato Russo não era um revolucionário comunista, mas certamente não era um yuppie. O esforço dele para que os jovens se vissem como agentes ativos na história estava lá, "somos a geração coca-cola", um hino crítico e irônico que só não entende quem não quer. Mas não foi isso que o fez herói. Sua pessoa-mensagem era humanista demais pra abolir a autocrítica.
Falo agora de mim porque acho que minha história se repetiu milhares, milhões de vezes pelo Brasil. Conheci a legião urbana muito cedo, pois meu tio e minha mãe ouviam, mas por ser muito, muito criança não dava muita importância, preferia meu disco do Chaves. Quando tinha 12 anos, o RR morreu. Ao ver minha mãe muito triste, e tanta gente falando sobre o RR na TV, perguntei quem era aquele cara. Ah, era ele? Comecei com a fita k7 com músicas que a rádio tocou naquele dia, numa primeira homenagem póstuma. Depois emprestei o LP do "Dois" de um amigo e gravei uma fitinha pra mim. Finalmente o CD chegou em casa e logo eu estava com Música pra Acampamentos. Depois o "Legião Urbana". Assim, aos 15 anos não apenas tinha a discografia completa da legião urbana como sabia, de cor, todas as músicas. E eu era apenas mais um. Minha primeira socialização na internet foi com um grupo de fãs da legião urbana. Pessoas incríveis, trocávamos emails em 1999 e isso era fantástico. Naquela época era costume fazer "Home Pages". E eu tinha a minha, cujo principal conteúdo eram todas letras da legião. As letras, minha gente, que eu digitava do encarte. O mp3 ainda estava sendo inventado na casa de algum nerd nos EUA. A primeira música em inglês que eu decorei foi uma versão para That's no Way To Say Goodbye que o RR gravou e que saiu, logo após sua morte, no "Último Solo", composto por sobras de estúdio.
É inestimável a importância do Renato Russo na biografia coletiva de uma boa fração das juventudes brasileiras desde então. Além de fazer pó da imagem do rockstar fodão, ele jogou pro olho do furacão da indústria cultural brasileira coisas como Jean-Jaques Rousseau, Bertrand Russel, filósofos e Henri Rousseau, pintor, inspiradores do pseudônimo. Falou de Baader-Meinhof, grupo terrorista comunista alemão também conhecido como RAF. Falou da Montanha Mágica, de Thomas Mann. Ele falou dos Sex Pistols e do Sid Vicious, símbolo do punk mundial. Ele cantou P.I.L., Leonard Cohen e Erasmo Carlos. Essas são algumas das incontáveis referências que ele fazia em suas composições, entrevistas ou até no vestuário (como referência ao Morrissey na maneira de vestir e dançar). Ele foi um iconoclasta que destruiu a imagem do roqueiro banal e nos deu meios de sofrer as agruras juvenis sem enlouquecer ou se matar. E a maneira de fazer isso foi ampliando nossos horizontes. Ele realizou a nossa educação sentimental incrementando nosso léxico emocional com esse repertório erudito que, ainda que intelectuais julguem plastificado, era e continua sendo muito mais do que a cultura de massas jamais nos ofereceu. Nenhuma homenagem ao Renato Russo é gratuita, pois é inimaginável o que seria o Brasil, hoje, sem sua passagem por aqui.