Um mês de chuva enjoada fazia daquele Agosto um Agosto como deveria ser. Dona Candinha, numa gastura, visitava a área de serviço e só pelo cheiro já sabia, mas apalpava mangas e barras das camisas no varal - lavar calça nem pensar -e, merda de chuva, a roupa não seca direito, fica essa morrinha de umidade mofada; imagina se fizer fritura, que nhaca. A senhora do 501 enojava-se do aspecto pegajoso dos grampos de madeira, meio verdes, quando ouviu a gritaria. Atocaiou-se perto da janela e viu. Da janela, o vizinho do 703 gritava que sua vagabunda, você não faz uma porra dessas comigo, passa pra você ver, passa pra você ver. Lá embaixo, protegida pelo telhadinho de zinco da entrada do bloco, sua mulher, Margarida, olhava com desprezo e medo e gritava que você é doente, não aguento mais teu ciúme, você me deixa louca, cansei, cansei dessa vida, olha aqui você machucou meu braço, seu monstro, vou na delegacia da mulher, cansei, quero ver você se foder, brocha do caralho. Vermelho de ódio por ver sua débil virilidade assim exposta, ele que meu pau ainde sobe, não pra você, cheia de estria, correu pra dentro e pegou um grande pote de bolachas vazio pintado a mão de florzinhas, acho que pela mãe, não lembro, que se foda. Segurando com ambas as mãos pra fora da janela, voltou a gritar e a ameaçar. Se passasse, jogaria, na cabeça, te mato sua vadia. A mulher desafiava, que passaria e ele não seria louco, todo mundo olhando, testemunhas. Não se via um vizinho na janela, embora todos estivessem assistindo à cena de camarote. Não havia segredos. Ela deu dois passos e o velho teve que dividir sua vida, antes e depois do pote, antes e depois, antes já foi, que depois? Jogou. Margarida, corpulenta, coxas grossas, pernas firmes e ainda belas, recuou rapidamente. O pote explodiu no chão e voou caquinho até na folhagem da Dona Aretusa. Rarrarrá, você errou, velho cego, e correu pra nunca mais. O velho ainda teve tempo de pegar outro pote, ainda pela metade dos biscoitos da páscoa, e jogar. Errou, já era tarde. Olhou pela janela, voltou a chover, garoinha. Fechou. Os vizinhos abriram. O velho enlutaria por longos dias. Quem vai limpar essa merda, só nisso pensava Sêo Osvaldo. Anoiteceu já no silêncio. Mais tarde, um vira-latas que passava por ali comeu os restos do casamento de trinta anos espalhados pelo chão.
Conversa interna com a sacerdotisa
Há 4 anos
Essa tua escrita falada é muito boa!
ResponderExcluirabs
Meio sem fôlego, ótima narrativa. Curti a foto que você colocou no template. Continue a saga!
ResponderExcluirli sem parar, era eu mesma, fugindo do pote, lançando o pote; era eu mesma uma vizinha bisbilhotando; era eu mesma caquinhos pelo chao. as tuas imagens sao palpaveis e o ritmo delas nos impede de parar a leitura, de tao absorvente. parabens!! vc é, de fato, um ancião.
ResponderExcluirquero te conhecer ao vivo. qdo vem a sp?
beijo!!