terça-feira, 18 de maio de 2010

De quando me descobri morto - Ato único

Após a ducentésima madrugada de trabalho na mina, descobri que estava morto. Se ainda me viam andar, falar e extrair carvão das paredes infinitas é porque, uma vez imersos os homens na escuridão mal iluminada, as sombras encarregam-se de protagonizar a existência. É assim, de tal forma, que não importa que morram todos - e estavam todos mortos, só então descobri - as sombras continuarão dando movimento e som ao lugar. E os homens que feitos sombra mexem seus corpos etéreos, constituídos de ausência, da luz que não chega a um certo espaço, num certo tempo, não imaginam que não vivem, porque a própria capacidade de imaginar é faculdade exclusiva dos viventes. Assim, tampouco eu vislumbrava que a morte me atacara sem que eu me apercebesse. Foi muito por acaso, ou fruto de uma maquinação muito diabólica, que me dei conta de meu estado. Aconteceu ao fim daquela ducentésima noite incompleta - só quem vê a madrugada (que é uma só) partir sabe que ela se vai sempre sem sucesso, derrotada, incapaz de impor-se sobre os dias (esses, sempre outros) que vêm sempre sorrateiros; quem dorme vive a ilusão da ordem, da sequência, e ignora a batalha que se trava no silêncio. Mas lá estava eu, caminhando para o portão de evacuação. Ao sair da mina tive os olhos de morcego perfurados pela jovem luz da manhã de verão que, sempre apressada, chega antes que os todos. Eu não tinha olhos, tinha apenas a certeza de não tê-los. Mas o que me doía na face era real como o sol do horizonte, deveria estar lá. Levei num impulso as mãos a esses olhos e dei-me com mãos que eram minhas e que não eram pás, picaretas ou carrinhos. Havia mãos, e nelas, braços. Com ambos segui o reconhecimento de um meu corpo alheio. Apalpei-me o ventre como uma criança aperta um animal de pelúcia investigando seu interior. Eu deveria ter vísceras, pois doíam ao toque insensível de minerador. Senti que era ar e não densa poeira carbonífera que me entrava pelas narinas e que, em mim, descia a um pulmão incansável, embora esgotado. Um coração começou a bater em meu peito e dali para artérias e veias e cada terminação nervosa de meu corpo entrou como em estado de euforia e pude sentir cada fluxo, do líquido biliar à meiose da espermatogênese; das sinapses ao ácido úrico acumulando na bexiga. Saindo das trevas, descobri um corpo inquieto. Beirava o insuportável essa plena sensação corporal pois era como se, ao encontrá-lo, tivesse assumido em minúcias o controle de toda função fisiológica. Nada era despropósito. Se esquecesse de batê-lo, o coração pararia. Eu era todo corpo, e quando você é todo corpo você está morto; pois o que é que enterram nas covas, nas sepulturas, nas minas?

2 comentários:

  1. Leio bêbado, talvez amanhã escreva outra coisa. Será que todas as fábricas são como essas minas? Será que todos os trabalhadores sofrerão de câncer e sofrem dessa não-existência? Independente disso, bater o ponto é tão necessário quanto ler um trecho diário de romance ou beber um litro de vinho? Vencer, Afonsinho, mesmo esmagado, essa máquina de sempre?

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  2. Eu me vejo morta todo dia. Espelho para isso existe.
    Gostei do teu blog. E voltarei.

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