quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - V

Um mês de chuva enjoada fazia daquele Agosto um Agosto como deveria ser. Dona Candinha, numa gastura, visitava a área de serviço e só pelo cheiro já sabia, mas apalpava mangas e barras das camisas no varal - lavar calça nem pensar -e, merda de chuva, a roupa não seca direito, fica essa morrinha de umidade mofada; imagina se fizer fritura, que nhaca. A senhora do 501 enojava-se do aspecto pegajoso dos grampos de madeira, meio verdes, quando ouviu a gritaria. Atocaiou-se perto da janela e viu. Da janela, o vizinho do 703 gritava que sua vagabunda, você não faz uma porra dessas comigo, passa pra você ver, passa pra você ver. Lá embaixo, protegida pelo telhadinho de zinco da entrada do bloco, sua mulher, Margarida, olhava com desprezo e medo e gritava que você é doente, não aguento mais teu ciúme, você me deixa louca, cansei, cansei dessa vida, olha aqui você machucou meu braço, seu monstro, vou na delegacia da mulher, cansei, quero ver você se foder, brocha do caralho. Vermelho de ódio por ver sua débil virilidade assim exposta, ele que meu pau ainde sobe, não pra você, cheia de estria, correu pra dentro e pegou um grande pote de bolachas vazio pintado a mão de florzinhas, acho que pela mãe, não lembro, que se foda. Segurando com ambas as mãos pra fora da janela, voltou a gritar e a ameaçar. Se passasse, jogaria, na cabeça, te mato sua vadia. A mulher desafiava, que passaria e ele não seria louco, todo mundo olhando, testemunhas. Não se via um vizinho na janela, embora todos estivessem assistindo à cena de camarote. Não havia segredos. Ela deu dois passos e o velho teve que dividir sua vida, antes e depois do pote, antes e depois, antes já foi, que depois? Jogou. Margarida, corpulenta, coxas grossas, pernas firmes e ainda belas, recuou rapidamente. O pote explodiu no chão e voou caquinho até na folhagem da Dona Aretusa. Rarrarrá, você errou, velho cego, e correu pra nunca mais. O velho ainda teve tempo de pegar outro pote, ainda pela metade dos biscoitos da páscoa, e jogar. Errou, já era tarde. Olhou pela janela, voltou a chover, garoinha. Fechou. Os vizinhos abriram. O velho enlutaria por longos dias. Quem vai limpar essa merda, só nisso pensava Sêo Osvaldo. Anoiteceu já no silêncio. Mais tarde, um vira-latas que passava por ali comeu os restos do casamento de trinta anos espalhados pelo chão.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - IV

Devia ser sábado pois fazia sol e a criançada toda estava na rua, ou melhor, vagando pelo condomínio. No verão - acho que era - é sempre assim. Os cupins e as crianças ganham asas e vão por aí, meio sem rumo, sempre em hordas. Então estas estavam lá, parece que jogando pedra nos morcegos que dormiam ressaqueados nas árvores mais copadas, quando ouviram um lamurio fino. Betinho pediu silêncio pra ouvir e todos começaram a farejar com os ouvidos o chão pra ver de onde vinha aquilo. Deram volta no guapezeiro do meio, mais dez passos, passa o boldo da Dona Filó, ali, debaixo da betoneira quebrada. Um gatinho! Nesse momento Claudinho torceu pra que todos pensassem como ele e brincassem de mirinha no bicho, quase falou, mas a prudência valeu-lhe, pois a piazada ficou comovida com a criatura. Guilherme tomou a dianteira e foi fazer festinha na cabeça do gato mas percebeu que a situação ainda não era permissível a carícias, então segurou e levantou o coitado com simulada grosseria. Teve pena, mas não poderia passar por bicha pros amigos. Erguido e exposto como um troféu, o animal gemeu mais alto que nunca e deixou evidenciada a debilidade que o fazia sofrer. Tá prenha! Olha, barrigão, deve ter uns dez aí. Põe ela de volta, imbecil, com cuidado! Eliminado por maus-tratos, Guilherme afastou-se mordendo os lábios de raiva. Beto, usando toda a experiência que não tinha com animais gestantes, pegou a gata no colo e levou-a pra perto dos prédios. Buscaram roupas velhas e leite, tudo muito bem escondido, fizeram uma caminha atrás do bloco B e passaram a apreciar o sofrimento da parturiente. Numa última cartada, Guilherme fez piada pedindo para a sofredora fazer respiração cachorrinho, no que foi prontamente incompreendido e mandado embora. Onde já se viu falar de cachorro numa hora dessas. O parto demorou a tarde toda. A mãe quase exauriu-se e os filhotes eram bolinhas de pelo e sangue. Eram tão nojentos que alguém até pensou se valiam tanto trabalho. Pareciam até os morcegos de mais cedo. De qualquer forma, lá estavam. Seis novas criaturas miantes. Sêo Hélio, o zelador manco, passou e viu o que acontecia. Estavam todos fodidos, a síndica ficaria sabendo. Anoitecia. Beto determinou que todos deveriam se revezar em turnos de sentinela. Dois conscritos por vez garantiriam a segurança até o amanhecer. O esquema de proteção funcionou perfeitamente até as 10 da noite. A partir de então imperava o toque de recolher imposto pelas mães. Jorginho, o encarregado da hora, subiu com a promessa de olhar pela janela, o que de fato fez com louvor até as 11, fim do seu período. A partir daí o ninho ficou desguarnecido. Mãe e filhotes dormindo, ninguém tomou o leite, até que são bonitinhos. Foi assim o último relatório. Durante a noite, as crianças eram crianças demais e dormiam fatigadas demais naquele sono pesado e sereno que só as crianças conseguem ter. Por conta disso, só os adultos ouviram uma madrugada inteira de gemidos de terror que vinham de algum lugar no vão dos prédios. Dona Filó odiava gatos e levantou às seis incrivelmente disposta a degredar os bastardos. Saiu de casa em pantufas de pano pra não fazer barulho e voltou sem tê-lo feito. Não eram nem oito da manhã daquele domingo cinzento quando, um a um, os piás foram chegando para ver como estavam os gatinhos. Muitos traziam víveres. No entanto, conforme iam se aproximando e percebendo a cena configurada, iam se juntando ao grupo de embasbacados. O chão pintado de sangue, um quebra-cabeças de tripas, perninhas, rabinhos e - claro - cabeças. Da mãe, nem sinal. Terror, terror. Estavam incrédulos e alguns sugeriram que deviam pegar o Guilherme, aquele doente. Fariam também dele mosaico, perninha cá, bracinho lá, cabeça. Viram só? Tem uma cabeça meio comida ali. Onde? Fernandinha passou, ia buscar jornal de domingo pro pai, grandão e pesado, só olhou, disfarçou. Ei, quem tem coragem de jogar nela uma tripinha?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - III

Três semanas mais tarde foi ele quem tentou espatifar-se contra a calçada, para horror e desespero das senhoras que, do chão, contemplaram duas indesejáveis bolas pendentes de um saco escroto e sem escrúpulos. Completamente nu, gritava as mais desconexas frases que um pretenso suicida jamais pronunciara. A única palavra que a audiência distinguia com clareza era "gravata", o que em nada fazia avançar a compreensão do lamentável monólogo. Após acionados polícia e bombeiros e já com o Cabo Guimarães pronto para, da janela do andar de cima, efetuar o bote de salvamento e imobilização, o sujeito desceu da janela e entrou em seu apartamento. A pausa dramática que se estabeleceu prolongou sofrivelmente o tempo. Na eternidade do primeiro minuto após o sumiço, todos esperavam pelo estampido seco de um derradeiro tiro que lhe abriria a cabeça, executado provavelmente no banheiro. Só o silêncio ecoou. Mais dois minutos e ainda. Cabo Guimarães, em nítida insubordinação que lhe custaria o posto, hesitava em investir contra a janela do apartamento em flagrante medo de virar ele o morto do circo armado, a vinte metros do chão, pendurado num barbante vermelho. Em dez minutos, nada havia mudado. A platéia, desanimada, começou a dispersar, voltando cada um a sua ocupação anterior, Gilson do bloco B a lavar seu Comodoro branco com a água do condomínio, os adolescentes a jogar truco na calçada, Dona Filomena a tentar identificar quem era o novo namorado da moça do 402 - o sexto só esse ano, o segundo gordo e o primeiro a usar sapatos. Restaram apenas os mais velhos e as mais crianças. O suicida, enfim, não voltou mais. Meia hora depois, quando os policiais arrombaram a porta do apartamento, encontraram o bêbado já de cuecas dormindo na mais fetal das posições que a meia-idade permitiria, ao lado de um copo com um líquido branco que - provou-se mais tarde - não passava de leite UHT semi-desnatado. Foi só então que a vizinhança pôde mensurar o tamanho da decrepitude que atacara o velho do 703.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - II

Numa tarde de quinta-feira atirou pela janela seu pequeno cachorro que virou três. A criançada, a princípio estupefata, não tardou a mexer com gravetos as entranhas do animalzinho, procurando entender como aquela massa ensanguentada era o tal do organismo sobre o qual falavam as aulas de ciências. Lá de cima, o velho ficou apenas olhando os piás executarem as exéquias e demais ritos fúnebres que tiveram lugar, concluída a investigação forense. Tinha o olhar grave, não sorria nem chorava. Contemplava ou menos que isso. Ele não estava lá, diria mais tarde Sêo Sebastião, contador aposentado e leitor entusiasta de Zíbia Gasparetto, seu olhar estéril indicava um corpo vazio jazendo sem alma. Os restos de toby foram enterrados aos pés do sombreiro do Sêo Cláudio - sem seu consentimento. Sete dedos de profundidade, é o certo pra animais. Sem contestações, Cristiano, após a demonstração de conhecimento da arte, tomou o posto de sacerdote-chefe da cerimônia e passou a conduzí-la. Determinou que no fundo da cova da profundidade determinada deveria haver uma caminha de folhas. Afimou que não, jamais procederia ao enterro sem a dignidade de uma caixa de sapato para fazer as vezes de ataúde. Prontamente atendido por Dona Candinha, sepultou o pobre animal sob uma improvisada cruz de galhos. Decretou que não voltaria a jogar bola no dia e subiria para pensar, sei lá, to meio mal. Todos fizeram o mesmo, exceto Guilherme que sentou numa calçada próxima ao túmulo e de lá o olhou fixamente por meia-hora, até que sua mãe o chamou. Quando ia embora, viu que o Velho continuava na janela, com o mesmo olhar de medusa. Teve um mau pressentimento que só passou na primeira colherada da sopa de feijão que sua mãe prepararia naquela noite.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - Partida

Começo agora minha primeira investida de mais fôlego nessa brincadeira com as palavras. Confundindo imaginação e memórias, pretendo reescrever as existências anônimas que me roderaram - eu, um outro anônimo - nos meus primeiros vinte anos nesse mundo. Trajetórias banais, problemas mesquinhos, desses que não dão romance. Morei a maior parte desse tempo em condomínios de classe média/baixa e nesses locais a própria vida de muita gente é comunitária, seus dramas são exposições permanentes que a audiência não hesita em visitar, comentar e discutir para, por fim, refutar, desprezar e detestar. São, portanto, obras de arte. Com isso não quero dizer que essa maneira de viver é ruim ou pior que a vida hermética das casas apartadas por jardins murados. Talvez seja, talvez seja melhor, não sei. Sei que é como é, e como é é a maneira como a vivem. Os textos sairão em forma de fragmentos, que é o jeito que tenho de contar as coisas. Postarei com mais frequência que de costume, por isso fiquem atentos. O fio condutor será a saga de um velho e o amor que por ele nutre a solidão. Por fim, aviso: Os personagens são todos fictícios embora não sejam nem um pouco irreais. Desejem-me boa sorte que vos desejo boa leitura.

* * *

Aos domingos, aparecia mais bêbado que de costume e não conseguia subir as escadas. Mijava nas calças sentado no corredor, gritando o que poderiam ser tanto blasfêmias quanto sonetos de Camões - era impossível distinguir. Por alguma espécie de milagre específico para almas decaídas, nessas circunstâncias seu indestrutível radinho de pilha só tocava Agnaldo Timóteo, o que sempre o fazia despejar sobre aquela poça de álcool e urina um rio de meio-litro de lágrimas abundantes. O choro farto e soluçado causavam também alguma compaixão nos vizinhos. Só alguma. Era a única situação em que estes lembravam que o velho saco de merda, como o apelidara Aretusa, a Impetuosa do 303, já fora um agradável colega de condomínio. A conversa boa e a considerável sofisticação - era o único do bloco que oficialmente já havia pisado numa universidade (agronomia, trancou quando casou, no sexto período) - colocaram-no noutros tempos numa posição de tamanha respeitabilidade que nas reuniões condominiais seu voto costumava ser seguido por, pelo menos, meia-dúzia, de modo que não era raro voltar das assembléias com pratinhos de bolos, coxinhas e outros quitutes que sempre dividia com a criançada do prédio - o que realimentava sua boa fama. Mas três anos são mil na convivência diária de um formigueiro e o espólio dessa dignidade toda era a insignificância percebida aos domingos. Era quando algum vizinho - que preferia fazê-lo em anonimato, ciente de que sua atitude era digna de reprovação pelos demais condôminos - deitava ao lado do montinho um pão com margarina e café-com-leite frio num copinho de criança, destes com tampa e biquinho, feito para as criaturinhas ainda incapazes de manter um copo sério em pé. O velho possivelmente tinha mais dinheiro em conta que seu benfeitor, mas a fome de solidariedade das pessoas havia sido alimentada durante tanto tempo com pão que qualquer outro tipo de ajuda poderia render uma congestão. Dona Germana apenas tolerava esse sinal de fraqueza dos colegas porque ver o velho ser tratado como mendigo causava-lhe íntimo gozo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Juro que não bebo

Sou esse sujeito imundo que te olha e te pede e te implora. Um pouco do seu dinheiro, do troco da miséria que te sobra. No bolso perdido, escondido, jogue. Na minha cara, em mim, por favor, por compaixão à minha detestável existência de podridão. Sujeito a tudo, aos humores, ao tempo, à morte. Da esperança, espero, uma moeda, por favor. Limpo seu chão, lavo, lambo limo. Pode até olhar pro lado, desviar o nariz pois fedo, fedo, fedo um horror, não me importo. Cague, eu limpo, espero, denovo, fede, mais uma vez, eu limpo. Pode gritar comigo, sou merda, mande-me trabalhar, vagabundo, marmanjo, mas jogue. Jogue uma moeda, pode ser com força. Em mim, na minha cara, veja, não há dentes. São restos do resto que resto. Diga que sou o que faço de mim, concordo, abaixo a cabeça, eu me humilho. Por um pedaço desse papel do bolso, imito um cachorro, quer ver? agora? Assim, rolando. Só te peço. Juro que não bebo. Aceito tudo. Sou um rato, não me importo. Vivo isso, tenho paz. Jogue uma moeda, por favor, não quero atrapalhar. Se você quer ouvir, sim, tenho família, precisam comer. Leite, ônibus, remédio. A puta que pariu, com todo respeito, senhor. Vá tomar sua cervejinha, você merece, a vida é dura, permanente pau no cu. Sem fugir, é foda, não dá. No sábado, até whisky. Não como eu, vagabundo vadio, cão sarnento, pra lá pra cá. Só pedir, deitar, rolar, lamber a mão. Tá lá, din-din, fácil. Vida fácil. Juro que não bebo. É mole, facinho. Um pão, é ali na padaria, margarina. Joga aqui, não precisa encostar. Na minha boca, aqui, joga, está aberta. Vê? Não tem dentes. Juro que não bebo.