quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Um elton judeu
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Ascensão e queda de um velho condômino - V
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Ascensão e queda de um velho condômino - IV
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
Ascensão e queda de um velho condômino - III
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Ascensão e queda de um velho condômino - II
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Ascensão e queda de um velho condômino - Partida
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
Juro que não bebo
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Toque de recolher
O telefone tocou histérico na madrugada. Acordei sobressaltado, já pensando nos velhos da família. Descalço, mesmo, nem senti a cerâmica fria, ziguezagueei meio trêbado de sono e quando enfim achei o desesperado aparelho, o abusado parou de tocar. Diabo de ligação. Trezentos batimentos por minuto, tremo como um hamster acagalhado. Já sentia a mesma palpitação que vez ou outra me ocupa há quinze anos, desde uma outra noite violada pelo gritar de um outro telefone. Lembro-me bem: ao toque, seguiu-se um choro contido, passos pela casa, luzes que iam acendendo progressivamente, as vozes cada vez menos constrangidas em romper o silêncio. Primeiro mamãe – que atendeu a ligação – depois vovô, meu irmão mais velho e uma prima que na época morava em casa. Tia Zica tinha morrido. Aparentemente aquilo ainda não era assunto pra mim, moleque de doze anos, mas encarcerado em minha alcova mofada, pude sentir o cheiro de talco da velha encrenqueira que nos visitava aos domingos. Depois disso ninguém mais na família morreu à noite, ainda que alguns tenham definhado miseravelmente - dando ao infortúnio de suas mortes a forma de uma corriqueira presença. Eram parentes pra voltar de viagem e, quando chegassem, em vez de abalarem, trariam de volta a ordem perdida e, consequentemente, algum acalento.
Esperei em frente ao telefone por mais alguns minutos. Vai que toca de novo e será o trabalho de ir e voltar. Não tocou. Fui até a janela e quando me dei conta estava com um cigarro na boca. Olhava as ruas, como ficam bonitas assim, reluzindo o amarelo que vem dos postes, os semáforos piscando a toa. São realmente bonitas as ruas vazias e silenciosas, livres da vulgaridade que as mesquinharias da vida ordinária lhes conferem. Fumei mais um pouco até sentir frio. Fechei a janela e a cortina mas, antes de sair, espiei furtivamente abrindo com um dedo a cortina pra ver se aquela pintura não era uma farsa, se ao dar as costas alguma coisa se moveria. Não, tudo continuava igual.
Deitei na cama que já estava fria. Foi o tempo de cobrir e me virar, o telefone voltou a tocar. Não pensei mais nos velhos, mas como se repetisse a cena, o aparelho emudeceu com a minha presença. Caminhei até a cozinha, abri a geladeira, fechei, olhei para a mesa, abri novamente a geladeira, tornei a fechá-la. No deserto da minha cozinha, a única coisa que se sobressaía era a garrafa térmica, altiva, sobre o deprimente lascado balcão de laminado azul. Um gole de café no meio da madrugada é de foder, mas não resisti. Ainda estava quente e, num copinho americano, o café preto é também uma agradável experiência estética e sinestésica. Voltei à janela, agora com a bebida na mão. Primeiro, a olhada escondida, depois abrindo-a sem vergonha. Mais um cigarro apareceu em minha boca, mas dessa vez, bem, o café estava lá, fazia sentido. O silêncio era mineral e as luzes continuavam amarelas. Nem um maldito cachorro aparecia, nem uma lâmpada se apagava.
Estava novamente voltando pra cama, abri mais uma vez a frestinha na cortina, nada, fechei. Nada? Não tinha certeza, na verdade não tinha prestado atenção. Mais uma espiada e, ah!, lá estava um sujeito caminhando pela rua. Vinha tranquilo, passos simétricos, mãos nos bolsos. Descia a Faria Lemos sem olhar pros lados. Era como se fosse às três da tarde, tinha a objetividade de quem vai à padaria pedir pão bem branquinho. Chegando à praça 12 de Julho, mudou seu rumo para um orelhão solitário perto das lixeiras. Não hesitou por meio segundo. Segurou o fone e com a mesma mão – a outra permaneceu no bolso – discou os números (ou assim parecia proceder). Foi o tempo de apertar as oito teclas e meu telefone tocou. Uma pedra de gelo subiu-me pela espinha, lambuzou-me o pescoço, caiu faceiro e se alojou em meu estômago. Atendi de primeira e ouvi a voz do outro lado dizer Vá dormir. Pensei que não seria prudente desobedecer a uma ordem tão peremptória dada àquela hora da noite. Voltei à cama e de lá só saí com o sol na janela, me acordando despiedosamente.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
domingo, 12 de julho de 2009
O homem que sorri e que gargalha
quinta-feira, 25 de junho de 2009
Saber muito ser ignorante
I
Memórias
Mas como nem só a casa é local de aprendizado, também direcionei minha ânsia por conhecer à escola. Falo isso frequentemente nas rodas de amigos e com frequência soa como piada, mas me lembro perfeitamente do momento exato em que aprendi alguns pontos elementares do meu currículo escolar. A revolução industrial foi na quarta-série, numa aula de estudos sociais. A expressão apareceu na terceira linha do primeiro terço do quadro (“lecionar é dividir o quadro em três”). Eu sentava na primeira ou segunda fileira a partir da porta de entrada, provavelmente na terceira carteira. Acho que foi numa terça. O evolucionismo darwinista foi em casa, eu tinha 11 anos e lia o livro de ciências (cuja capa era dum verde musgo contaminante) na cama de cima do beliche do meu quarto. A janela estava aberta, era uma tarde de tempo bom. Em ambos os casos senti uma sensação maravilhosa, o mundo se descortinando pra mim, me convidando para entrar, dar uma voltinha, conhecê-lo. Coisas que eu não podia ver, um protozoário, a Inglaterra do século XVIII, mas que agora eu sabia que existiam.
O caminho para o conhecimento nem sempre foi fácil, entretanto. Lembro de quantas coisas entraram no meu caderno sem eu me dar conta. Aparentemente já estavam ali há algum tempo, e quando me dava conta de suas existências olhava para os lados, como quem pergunta: ela já ensinou isso?, mas com vergonha acabava não revelando minha ignorância. Na maioria das vezes, tratava-se de uma aula que eu havia perdido ou por tê-la faltado, ou por ser um faltante presente. No segundo grau tornaram-se famosas minhas viagens de 10, 15 minutos, nos quais meus olhos se perdiam no horizonte e meu contato com o mundo material se resumia a um quase-nada. Uma dessas lições perdidas foi o substantivo. Que diabos é um substantivo? Sabia o que era um verbo, um adjetivo, um advérbio e até um adjunto adnominal se tornou familiar pra mim, mas substantivo, que diabos. Por exclusão, deduzi que substantivo era aquilo que não era nenhuma das outras coisas, ou seja, ao mesmo tempo é tudo e é nada. Um dia me deram a dica de que substantivo é aquilo que se pode tocar. Era falha, já que alma, vida e morte também são substantivos, mas vocês sabem, uma dica falsa nos faz perder muito tempo.
Devaneios
Conhecimento é poder. Essa máxima, tão verdadeira, tão enganosa. Precisei crescer pra aprender isso. Não foi nada fácil e tenho certeza que ainda não aprendi em todas as dimensões esta lição. Afinal de contas, saber qualquer coisa que seja te abre alguma porta. O sujeito que sabe cozinhar com maestria pode se dar ao luxo de posições políticas heterodoxas e ainda assim terá a casa frequentada. Conhecer os caminhos para o sucesso financeiro te garante uma vida materialmente confortável. Dominar o conhecimento produzido por uma área do saber te garante, no mínimo, um título e, quem sabe, algum reconhecimento no meio. Mas esta é apenas a face verdadeira do poder do conhecimento. Afinal, de que vale, por exemplo, ter a casa frequentada e viver em solidão? Ou dormir em lençóis da mais pura seda e nela sofrer a angústia de não poder comprar uma vida nova? Ou então ter os louros do reconhecimento por algo que você mesmo não dá importância? O conhecimento só garante a si mesmo.
Na verdade, nem isso. Quem realmente sente prazer em aprender coisas novas – e nesse momento lembrei dos filósofos e de como devem rir lendo esta minha filosofia de boteco – conhece a dinâmica em que se dá esse processo. Aprender é como caminhar num brejo, ou na expressão já consagrada, num terreno movediço. Você dá um passo adiante, progride, muda de substância, acha que evoluiu, que está seguro, mas em pouco tempo começa a afundar e precisa dar um novo passo e mais um e mais um. Só que esse brejo (ou esse terreno) é infinito. Não há margem segura e só se tem duas escolhas possíveis. Parar e afundar ou dar um passo mais e começar a afundar meio metro adiante, e adiante, e adiante! Isso significa que quando você para para olhar para (travalíngua) trás e ver o caminho que já percorreu, admirar a paisagem da sua sabedoria, você está afundando nela. Se demorar, é possível que não consiga mais se mover, então, keep walking.
Mais que paradoxal, é trágico. Quando está aberto ao novo, você só aprende alguma coisa para desaprender no instante seguinte (e vamos tirar dos olhos a lama da metáfora). O saber é feito dessa matéria etérea, volátil, inconstante. É, por sua natureza, pesado como chumbo mas se desfaz com o ar, se você permite arejá-lo. Infelizmente isso não é muito comum e vê-se muitos quixotes tristes que saem por aí montados em seus velhos pangarés de conhecimento, iluminados pela luz fraca e opaca das histórias de cavalaria de outros tempos. E isso não é difícil de acontecer. Ouso dizer que, em alguma medida, acontece com todos. Quem não enche o peito ao dizer “EU SEI”?
Sempre me fez, e agora me faz ainda mais sentido a imagem do sábio silencioso, a do silêncio como resposta. É um ideal, claro, que representa a humildade que devemos ter diante do conhecimento das coisas do mundo, a prostração diante da nossa insignificância diante do tudo (em seu lato sensu). Por isso, busco cada vez menos usar o tom peremptório, definitivo. Escrever suas convicções na pedra, pra quê? Para depois, de picareta em punho, sair destruindo o que foi gravado? Ou é para não precisar jamais ter novas convicções? Parafraseando o que Eduardo Galeano falou sobre a utopia, acho que o conhecimento não serve pra nada a não ser para te fazer caminhar tentando (sem sucesso) alcançá-lo em definitivo. É a sombra na caverna, é o rabo do cachorro.
Enfim, são só devaneios e a essa altura abandono o tema que me motivou a escrever este texto sem nem ao menos citá-lo. Sim, exatamente, quando abri o editor de texto planejava comentar sobre algo que venho ruminando há alguns dias, inquietação resultante da leitura de um livro. Vou abortar o tema com a promessa de retomá-lo muito em breve, esforçando-me para não ser prolixo. Ou melhor, é uma quase promessa. Vai que amanhã acordo e dessa reflexão só encontro a lembrança?
quinta-feira, 18 de junho de 2009
Poesia de Alberto Caeiro
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
O café-com-leite que tranquiliza
A imagem da serenidade pra mim é um copo de café-com-leite. Café-com-leite quente, mas não pelando, cheio até a borda no copo de requeijão ou americano. Bastante açúcar, nem muito claro, nem muito escuro. Café-com-leite às cinco e meia da tarde, sem pressa, mas sem preguiça e sem cansaço. Nada de cappuccino, nem espresso corto nem cem-por-cento arábica. Café do mercado do bairro, o que estiver em conta, e leite de pacotinho, tipo C. Solúvel, nem pensar. Sob o sol ainda firme se for verão, sob o laranjal do lusco-fusco se for primavera, sob o céu cor de cimento se for outono, sob a penumbra do frio se for inverno. Acompanhado de pão com margarina e só, sem modéstia, sem pretensão. O café-com-leite de quem vai vivendo, sem buscar novos sabores, sem sofrer pelo que não pode, sem querer o que não conhece. Quando eu flerto com o cotidiano e miro na vizinhança uma pessoa tomando assim no fim da tarde o seu café-com-leite, sem fazer dele uma refeição faustosa, sem também por isso deixar de tomá-lo, alimentando-se porque é animal, de café-com-leite porque é cultural, sinto-me contagiado pela tranquilidade. Sim, pois num mundo que não é nem anterior nem posterior à cafeína e à tecnologia nutricional, mas que corre alheio a estas, como que no seu fusca velho mas original e que não sente a menor vontade de olhar para o lado quando para no sinal pra ver o carro que lá está; nesse mundo que não tem respostas porque não faz perguntas, o café-com-leite pode ter uma agradável ação ansiolítica.
domingo, 31 de maio de 2009
Mundo Imbecil
Prólogo
Que mundo imbecil, que mundo imbecil, que mundo imbecil. Não consigo pensar outra coisa. De verdade, como é imbecil. Tenho uma dor atroz nas costas, na coluna, nos músculos, nos ossos, no sangue. Não consigo nem ler, nem escrever, nem virar o pescoço. Bonito, combina com meu espírito velho de velho ranzinza. Afinal, o mundo é imbecil e não há porque não sê-lo. Levantaria da morte para dizê-lo. Ênfase na ênclise entusiasmada. Imbecil-cil-cil. Pois veja, pego um exemplo, e um exemplinho de nada, assim ó, titica de galinha. Desses que você dá, indignado, e todo mundo te olha atravessado, com vergonha de te mandar a merda, e diz que sim, é verdade. (O corretor ortográfico me diz que merda não existe, será que eu existo? Elton. Ufa, existo. (Ufa não existe.))
Ato I
Os filmes, na televisão. Eu sei, é pegar pesado, mas leia até o fim. Os filmes da televisão. Todos têm censura, um numerinho que aparece no canto da tela, subindo de par em par, 12, 14, 16, 18, além, claro, do L. Pensemos agora (enquanto ainda conseguimos) no cliente preferencial da censura atual: sexo. Em tempo, mundo imbecil. O filme L ideal tem atores e atrizes sexualmente desmotivantes e, imagino, em breve evitará animais pois estes andam pelados. Num 12 clássico pode-se ver um beijo, as mulheres podem usar batom e, com alguma ousadia alguma delas pode tocar o próprio cabelo. Num típico 14 começam as metáforas-para-o-ato-sexual, logicamente, no nível 1: dormir com. São autorizados decotes em V cujo fim não ultrapasse a latitude do começo dos mamilos. Homens podem figurar sem camisa. A relação sexual é insinuada quando um casal se beija e cai na cama (talvez grama) enquanto a câmera se levanta e filma o teto (talvez estrelas). Nos 16 as coisas começam a ficar quentes. Sim, é a hora dos peitinhos. São permitidos até 3 peitinhos cujos mamilos não estejam eriçados (há registros de até 5, 1 eriçado). O ato sexual é completo, ou seja, um homem e uma mulher (isso sempre sempre sempre) deitam e rolam na cama, semi-nus e vez ou outra um deles encosta no seio (dela) ou na bunda (dele). No plano moral, é a hora de se ouvir “fazer sexo”, pois estamos nas metáforas-para-o-ato-sexual de nível 2 . Enfim, chegamos aos 18. É nessa idade, quando já votamos há 2 anos, já trabalhamos há 2 anos, já podemos ser mesários de eleição, já podemos servir ao exército (e pegar em armas), já podemos ser presos, já podemos casar e já podemos ser nomeados em cargos eletivos, que, enfim, podemos ver uma vagina. Mas não exatameeeente uma vagina, e sim os pelos (muitos, muitos pelos) pubianos que indicam que ali, em algum lugar debaixo daquela camada de pudor, há um órgão sexual feminino. Tradicionalmente, pintos eram excluídos da exibição televisiva. Pintos simplesmente não entravam. Mas os tempos são outros, os valores se perderam, a família está desestruturada e eis que vez ou outra, numa média de 2 por ano, pintos dão o ar da graça na tevê. Não qualquer pinto, claro, tem que ser um bem molinho e de preferência minúsculo. Pinto duro dá cadeia e ponto final. Claro, chegamos também ao nível 3 das metáforas-para-o-ato-sexual, e vou te comer e foda-se são permitidos.
Ato II
Isso tudo sozinho já parece suficientemente ridículo, mas ah, o mundo é imbecil. Há um outro tema sobre o qual a censura exerce seu poder bélico: a violência. Resumidamente, é assim: L: briga de socos. 12: armas, tiros e morte. 14: armas tiros, morte, explosões, sangue e membros decepados. 16: armas de destuição em massa, metralhadoras, decapitações, muito sangue, centenas de mortos, explosões monstruosas. 18: tudo é permitido. Ah, mundo imbecil, mundo muito imbecil. Coloca todo tipo de restrições, interdições, místicas, paranóias, bulas papais e pelos pubianos sobre o corpo humano, a coisa mais democrática e durante muitas horas da vida de quase todo mundo também a mais divertida. Todo homem tem pinto e toda mulher tem peito, uns mais, outras menos, mas todos têm! Que diabo faz ser muito mais aceitável pessoas sendo mortas violenta e friamente que a exposição do corpo que todo mundo tem? Eu disse que era imbecil. E muito imbecil. Se não fosse, ohhhh, pedofilia, o filme da vida íntima dos jovens de 14 anos talvez tivesse censura 18, ou melhor, nem isso, pois, enfim, ereções... Ah, como é imbecil. O corpo é caro demais e a indústria da pornografia lucrativa demais para que a exibição pública das condições anatômicas naturais comuns a todos os humanos seja tolerada.
Epílogo
Desse mundo imbecil eu soube agora que em Santa Catarina foram recolhidos das escolas 130.000 livros, preciso repetir, CENTO E TRINTA MIL LIVROS (LIIIIVROOOS) do Cristóvão Tezza porque os entendidos em educação acharam que ele não tinha uma linguagem adequada para jovens do ensino médio. Linguagem chula. SIM, estavam achando que o Tezza iria ensinar palavrões para os inocentes adolescentes de dezesseis anos! E o pior, ele usou uma metáfora terrível para se referir ao órgão sexual feminino: pêssego! Ohhhh, pêssego não, isso já é demais!
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Embalado a vácuo
Estou vazio. Meus dedos estão murchos, enrugados como se tivessem sido embebidos por cem mil anos na mais morninha água. Meu cérebro escorre pelo nariz, como ranho, com o ranho, como ranho. Torço com a força que eu não tenho meus pensamentos e só o que pinga miseravelmente é um nada sem dor e sem cor. Está aberta a temporada de caça-palavras, pois a estação do silêncio chegou. Por deus. Sou feliz por ter meus livros já escritos na estante.
sábado, 23 de maio de 2009
Anti-Hermes Silencioso
Estou encolhido num canto e meu coração bate como o de uma galinha. Espremido na esquina onde um rachado muro de concreto velho encontra a parede chapiscada de uma garagem estranha. Ouço o silêncio das televisões que gritam a novela das oito como que me jogando na cara que o dia morreu e me mandando dormir. No céu, meia dúzia de estrelas me olham com angústia. Estas estrelas que me viram nascer e que, malditas, me virão morrer; parecem rir da patética condenação ao patético que é ser inevitavelmente sozinho e ter que se esforçar pra não se mostrar uma evidente repetição. Estrelas que me viram nascer e que me virão morrer, que viram os homens antes de mim nascerem, até o primeiro, e testemunharão os próximos morrerem, até o último.
Carrego numa mão um pedaço de pedra, talvez um tijolo ou sobra de concreto. Seguro com violência, como se a pedra fosse a minha coragem e fosse um bicho arisco que não aceita ser preso. Sou uma criança, tenho os pés descalços e uma camiseta surrada. Tremo de frio pra não achar que é de medo. Mais uma vez, o silêncio, agora o dos passos de algum estranho caminhando junto ao muro. Meu coração não quer se calar e tenho que fechar a boca para que não escape, ele também. Num pulo, seguro o cimo quase com a ponta dos dedos, pra me levantar, vou dobrando os cotovelos e ralando os braços, o peito, a cara. Vejo que é uma pessoa, só poderia ser uma pessoa, mas não quero saber quem é. Estamos no breu, as estrelas ridículas são testemunhas tão passivas que não podem sequer iluminar a cena. Estou resoluto, em cima do muro. Atiro a pedra com violência, ouço um grito de dor, jogo-me ao chão como se não fosse eu, mas um saco de lixo fedido. Corro sem pensar e sem praonde, como um anti-hermes silencioso.
sábado, 16 de maio de 2009
A morte (é) premeditada
Nesse bar se encontravam desgraçados, não pra lamentar qualquer coisa, se suas vidas eram horríveis, delas não se poderia fazer filmes ou livros. Não viveram grandes amores, dramas ou tragédias. Apenas viveram, meio a contragosto, sempre sem paixão. Encontraram na cachaça o asilo para a perseguição da vida compulsória. Não era a descrença nem um saber elevado nem as decepções que os levavam ali. Era uma miséria que sentiam e que não poderiam expressar porque não a conheciam. Estavam vivos e viver era melhor com álcool. Assim esqueciam que existiam.
Pouco conversavam, não havia muito a ser dito. E quando diziam, não iam longe. Discutiam mesquinharias da vida ordinária, que cidade fica mais perto de que cidade, o nome de uma rua, o ator daquela novela de 79. Ficavam nisso. Não havia televisão, não comiam. A mesa de sinuca era pra adolescentes que vinham e iam e nada mudavam. Não lamentavam nada. Não brigavam. Nada disso faria sentido pois não eram tristes - tristes eram suas vidas. Estavam lá porque eram obrigados a existir e o suicídio era algo em que nunca haviam pensado. Aliás, não havia porque fazer isso se no fim iriam morrer de qualquer forma.
Um dia o bar não abriu. Na porta, um bilhete. O chapinha, um dos ébrios, havia morrido. Alguma coisa no coração que os médicos não se preocuparam em descobrir o que era. Afinal, já estava morto. E se ainda vivo era um corpo sem quem o reclamasse, que seria morto? Seu funeral estava vazio. Os bêbados não foram. Acharam outro lugar onde beber. O dono do bar, que não era bêbado mas tinha a alma embriagada, aproveitou o pretexto e ficou em casa de cueca vendo televisão. Foi enterrado no túmulo da família. Não acharam uma foto pra colocar ao lado da de seus pais. Ficou pra depois. No dia seguinte, o bar abriu. Os bêbados ficaram felizes, puderam voltar. Falaram sobre o chapinha, lamentaram, ninguém chorou.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Patos nunca são cachorros
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A quem não sabe matizar, resta a insânia
Patos nunca são cachorros
Um dia vi um pato
que queria ser cachorro
tentou latir
tentou bater o rabo
tentou até roer um osso
coitado, não tinha dentes
mas ele queria muito ser cachorro
seus amigos-patos lhe falavam:
ser cachorro é até bacana
mas agora tá difícil
mas o pato não ouvia
corria de bando em bando
procurando dar um jeito
"quero mesmo é ser cachorro"
era o que dizia
e não era um absurdo
nesse mundo as coisas mudam
mas não desse jeito
um dia ofereceram-lhe pêlos
"que feiura um pato peludo!"
não aceitou, afinal
queria mesmo era ser cachorro
e continuou com sua busca
não tardou, porém, ele cansou
"para um pato, ser cachorro é impossível"
e num negócio desleal
aceitou tornar-se rato
"isso está ao meu alcance"
uma vez rato, deixou os patos
seres sonhadores
e tocou sua nova vida
nos esgotos, nos lixos
mas um dia foi terrível
encontrou um cachorro
que faminto, quis comê-lo
chorando, contou que fora pato
e que quisera ser cachorro
o cão parou
e riu, riu, riu
"e porque não virou cachorro, afinal?"
perguntou ainda rindo
"aprendi que é impossível"
falou o rato, que era pato, que agora quase não era nada
o cachorro riu que até lacrimejou
"de onde tirastes essa idéia?"
o rato, orgulhoso de seu aprendizado respondeu
"da vida, ora bolas"
"não te enganes, caro rato" retrucou o cão
"foi de ti, e apenas de ti que tirastes esta conclusão"
o rato, que sofria com aquela sessão de tortura prolongada, gritou
como quem se acha sabedor de muita coisa
"é possível, por acaso, um pato virar cachorro?!?!"
o cachorro não respondeu
virou-se e mostrou sua pata traseira esquerda
o rato, sentindo a barriga congelar, balbuciou
"é uma pata... de pato"
o cão contou então sua história
que fora pato e que quisera ser cachorro
passou pelas mesmas dificuldades do agora-rato
sofreu, penou
aprendeu também a mesma lição
"patos não podem mesmo ser cachorros"
mas pensou um pouco mais
e percebeu
que para que pudesse ser cachorro
tinha, primeiro, que deixar de ser um pato
e aprendeu, então, a olhar e a ouvir
percebeu que os amigos-patos tinham muito a lhe ajudar
muitos queriam também deixar de ser pato
descobriram, juntos, o caminho para se chegar a ser cachorro
não sem muita luta
dia a dia pensavam
"o que faz de um cachorro, um cachorro?"
"cachorros latem", disse um
"cachorros têm dentes" disse outro
"cachorros têm pêlos" disse ainda um outro
conforme iam aprendendo
seus corpos iam se modificando
até o momento em que se tornaram cães
o rato então objetou-lhe
"não és um cão completo, tens uma pata ainda de pato!"
o cachorro (ou o que mais se parecia com um na ocasião) serenamente respondeu
"é bem verdade, meu nobre" e continuou
"mas é que aprendi muita coisa nesse caminho... nada foi em vão"
"primeiramente, só serei um cachorro quando aprender a ser cachorro"
"e isso são se pode saber quando acontecerá"
"entretanto, mais importante que isso foi outro aprendizado"
contou então sobre alguns de seus amigos
que ao tornarem-se cães completos, enlouqueceram
ao descobrirem que cachorros também sofrem
e têm problemas como qualquer bicho no mundo
o que o quase-cão aprendeu com isso?
foram estas as suas palavras:
"para quem foi pato, poder ser um cão é o paraíso
mas para quem já é cão, ser um cão pode ser um sofrimento
o melhor então a fazer é deixar de ser um pato
sem nunca chegar a ser um cachorro
porque quem pensa ser um
abre mão do mais importante
que é querer sempre ser um cão"
o que aconteceu com o rato-que-foi-pato não se sabe
o que eu sei é que não foi comido pelo quase-cão-que-já-foi-pato
mas se ele aprendeu algo com aquela situação
já deve ter deixado de ser um rato
porque para um pato que um dia quis ser cachorro
aceitar ser só um rato é muito pouco e muito fácil
é patético
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Da epidemia e do sangue quente
Que surpresa boa saber que tanta gente leu e gostou do último post. Levo todos com muita estima. Como eu disse a uma pessoa que comentou ter lido o texto sobre o domingo, acho que se eu sobreviver à minha própria vida, lá no finzinho, no crepúsculo da existência, quando a luz da consciência se transformar num lusco-fusco efêmero, triste e lindo, vou me desfazer em memórias. Pois se aos vinte e quatro já as tenho com tanto apreço, que dirá aos oitenta (e que os deuses me permitam tal graça!). Entretanto fiquei um pouco preocupado.
É quente o sangue que oxigena este cérebro e estas mãos que lhes escrevem. Carrego ainda o ímpeto da juventude - que alguns carregam para sempre. Minha urgência de escrever nem sempre é de contemplação. Às vezes, preciso mesmo transcrever um sentimento colérico. Mas claro, nada é a toa. Acredito muito que uma certa raiva, uma revolta, são sentimentos de quem ama. É um estilo de amor, certo, tipico daqueles que, como eu, têm no coração um pulsar quente e violento. Amor que não é melhor nem pior que outros amores, é apenas o único jeito de amar a estes possível. Talvez um pouco trágico, encampo cruzadas contra os problemas mais insignificantes - talvez os elevo, assim, quase à categoria de males da humanidade. Mas isso é tão somente porque eu amo, e não falo só de mim, mas a partir de mim, dos milhões como eu. Discuto bem mais do que eu gostaria com a minha companheira, mas isso é apenas porque a amo absurdamente. E ela sabe que se um dia eu me calar, será o fatídico sinal de que meu amor virou brasa, ou pior, fez-se já em cinzas.
Mas por que este confessional e confuso prólogo? Com sinceridade, não há um porque. Apenas lembrei disso pois na segunda metade da semana passada nós todos começamos a ser bombardeados pela televisão com notícias sobre uma tal gripe suína. Logo no primeiro dia já pensei, pronto, após ter morrido de aids, ebola, gripe aviária, bactéria legal, protozoário assassino, terei a honra de morrer de gripe suína. Com a dignidade, aliás, de quem uma vez desencarnado, percorrerá os mundos em seu galante traje de espírito de porco. É brincadeira... Nossa sociedade tem um imenso sentimento de culpa por existir. Desde os mais remotos tempos olhamos para o céu nos perguntando quando a brincadeiria iria acabar, quando Ele, o dono da bola, viria tomá-la de volta. Inventamos fins do mundo que, ao não se realizarem, se renovam na expectativa de novos fins do mundo. Viver é bom demais para ser verdade e seremos castigados. A mídia sabe disso. E sabe mais, que além dessa paranóia apocaliptica, temos historicamente fatos preocupantes, como a peste negra que dizimou 1/3 da população européia ou a gripe espanhola que vitimou 60 milhões de pessoas. Isso torna o medo a mercadoria mais vendida no mundo. Para além da já conhecida "teologia do cagaço" que manteve a igreja católica medieval em pé, a indústria do medo vende muitos remédios e muito, muito jornal. E foi isso que fizeram. O curto verão da gripe suína, aka H1N1, aka influenza a, durou uma semana. Hoje já suspeitam o que sempre souberam, que a terrível, letal, mortal, cruel, devastadora, genocida e apocalíptica gripe não passa de uma... gripe. Uma gripe mais forte, é verdade, mas uma gripe. E com que sarro vi matérias e matérias nos jornais sobre como 'identificar sintomas da gripe suína'. Dor de cabeça, febre, dor nos músculos, articulações... Será possível que acompanhando o homem desde seu surgimento ainda não sabemos identificar os sintomas de uma gripe?! Dir-se-á que, ora, uma gripe foi a gripe espanhola e fez o estrago que fez. Pois bem, em 1918 morria-se de apendicite (e as cirurgias eram feitas sem anestesia, com éter!). Além do mais, algo que em incomoda muito é o fato de saber que morre-se muito ainda hoje de doenças completamente sem graça. Não vendem mais jornal. São as feias e bobas cólera, malária, febre amarela... e a fome. Ah, se a inanição fosse contagiosa... Enfim, agora já começo a chover no molhado. As notícias são cada vez menores e mais raras. A maior vítima disso tudo até agora foi a liberdade. Pois muito obedientemente fechou-se um hotel, um país, uma planeta. Nos mais remotos lugares, pessoas pacificamente aceitaram o medo e medidas cautelares. O abraço foi proibido. Daqui a amanhã, numa nova devastadora epidemia de uma semana, talvez proibam o sorriso. Por fim, um dia chegará em que provarão os malefícios clínicos de se pensar.
domingo, 26 de abril de 2009
Manhã de Domingo
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Paraguaia
Não usar camisinha é fácil, foda mesmo é manter o celibato!
quarta-feira, 22 de abril de 2009
De celebridade instantânea a macarrão instantêneo
Isso não é apenas - afinal talvez também o seja - um olhar essencialista. O que encantou a mim e ao mundo não foi a simplesmente o talento musical da mulher exibido no video. Hoje, o talento está por todo lado. Aliás, já há talento de sobra nas interpretes da mesma música na Broadway. O que nos encantou da Susan Boyle foi aquilo que não vimos - mas imaginamos. A inocência já há tanto perdida, os desejos, a imposição da vida ordinária sobre nossos ridículos sonhos, a resignação, a persistência e enfim, a realização. Foi também a mensagem que nos chegou de que em algum lugar no mundo - talvez saindo da boca menos esperada - ainda existe algo que corresponde ao mesmo tempo aos nossos desejos de simplicidade, de originalidade, de humildade, de puros sentimentos transformados em arte; e também aos exigentes parâmetros de qualidade do nosso mundo (vamos lembrar das milhões de pessoas igualmente simples humilhadas neste e em programas congeneres por não atenderem a este elevado padrão de qualidade), parâmetros opressivamente técnicos. Tudo isso se acabará cedo ou tarde, e não veremos mais em Susan a mulher (e os sonhos, a inocência, etc) que vimos em I Dreamed A Dream. Sem dúvida podemos dizer que o sonho está se realizando. É bem possível que Susan seja feliz. Quanto a nós, continuaremos pagando nosso suplício eterno: cavar fundo a alma humana, encontrar o mais precioso diamante apenas pelo prazer de desfazê-lo em mil pedaços. Somos doentes. Se ainda duviam, leiam:
"Simon [produtor do Britain's Got Talent, o programa de TV] pode ver o potencial lucrativo de Susan. Ele não vislumbra apenas o lançamento de um disco dela na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas também um filme e produtos de merchandising", confidenciou ao jornal "Daily Star" uma fonte próxima a Cowell.
http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2009/04/22/susan-boyle-pode-ter-sua-vida-transformada-em-filme-755375125.asp
domingo, 19 de abril de 2009
Ouvidos Caninos
sábado, 18 de abril de 2009
O Ébrio de hoje
Você sabe o que é chegar aos sessenta e três...
... dando duas por semana?
terça-feira, 14 de abril de 2009
O Marujo
O Marujo
Era fim de tarde e os últimos fiapos da luz vermelha do crepúsculo já se iam perdendo. O homem rude de expressão fechada entrou em sua casa e, executando o hábito adquirido há apenas um ano com a morosidade de quem o fez há trinta, passou um café forte e o tomou sem açúcar. Aposentado fisicamente por conta de uma hérnia de disco e moralmente pelo fato disso acontecer enquanto ainda possui braços volumosos e fortes, passa os dias remoendo as memórias do que sem querer foi sua vida.
Viajou o mundo todo, teve tantas mulheres quantas foram as noites solitárias em terras estranhas. De algumas destas, traz tatuagens, de outras, cicatrizes. Lembra-se de países que o mundo já se esqueceu. Não se sabe se apesar ou por conta disso, e a despeito do que povoa a imaginação dos sonhadores, nunca gostou de lugar algum que em sua existência peripatética tivesse conhecido. O único lugar de que gostava era exatamente o único lugar de onde fugira e pra onde prometeu jamais voltar. Réu confesso, entregou-se ao mundo como castigo auto-infligido. Pelo menos foi o que acreditou muito tempo atrás, mas durante três quartos de sua vida pensara toda noite, com uma religiosidade que não tem o maior dos cristãos em suas preces, que não passava de mais um ser feito desse repugnante medo e que tem a vida como algo que vale mais que a dignidade. Somente agora que as luzes dessa existência começam a fraquejar é que se dá conta de que a culpa e a vergonha de tê-la salvo fizeram-no enterrá-la fundo na culpa e na vergonha de nela sentir algum prazer.
Era esse o homem que sentava sozinho para tomar café amargo, pois havia vivido a vida inteira sozinho e apenas amargo é que poderia morrer. Decidido que estava a utilizar este tempo último que lhe restara simultaneamente com e sem saúde – o que só poderia ser o poder divino já anunciando que sua sentença estava lavrada – para pensar sobre si mesmo, desejava apenas matar o tempo antes que o tempo desse o troco. E se pensava em si não era por ter-se como a única pessoa que valesse o pensamento, mas por não ter conhecido ninguém mais. Abriu a mesma pequena mala de couro marrom com presilhas de cobre que usara em sua fuga quarenta anos atrás e a descobriu mais vazia que então. Encontrou fotografias de mulheres que talvez tivessem tido pra ele alguma importância. Lamentou não lembrar de nenhuma. Abriu algumas cartas e iniciou sua leitura, mas fazê-lo era como abrir um livro nunca lido em uma página qualquer: falava-se sobre pessoas desconhecidas com seus sentimentos desconhecidos. Viu um envelope velho, ainda lacrado e sem selo algum. Era certamente a mais velha das cartas. A letra parecia conhecida, mas não pôde se lembrar de quem era. Iniciou a leitura. Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Parou. Tomou mais um gole do café que já estava frio. Aconteceu, então, que pela primeira vez desde a esquecida infância, este parricida chorou.