quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um elton judeu

Na semana passada, vi um homem esterilizar um pedaço de ferro na chama de uma lamparina. Em seguida, enfiou o ferro em meus olhos - sim, nos dois. Minutos antes, este homem me perguntou se eu era judeu. Não esqueço aquele olhar inexpugnável. Não sou. Releu a ficha, voltou com o mesmo olhar. É Zimmermann. Judeu. Só pode ser judeu. Mas isso ele disse com os olhos - os dele. Um pouco antes disso eu lia Philip Roth, judeu, contando a história de um jovem judeu que tenta fazer as coisas direito, mas só toma no olho - naquele. O oftalmologista deve ter sentido algum prazer em furar os olhos desse judeu envergonhado, travestido de gói, judeu sem bar-mitsva, sem pessach, e, glória a deus, não circuncidado. Resolveu fazer em mim um Dia do Perdão involuntário no mundo sem autoclave. Quase capotei com a anestesia. Teto preto, teto preto. Ufa, voltei. O sujeito não botou muita fé nesse judeu infiel. Respira fundo que passa. Saí babando com os olhos furados e o taxista carioca teve tempo de me contar três histórias de doença nuns 56 palavrões. Puta merda, que dia judeu. Passou. Ontem fiz lentilhas. Com costelinhas de porco, não exatamente kosher. Acho que não dou certo como judeu. Uma pena, estava começando a gostar da ideia. Pelo menos os olhos parece que estão bem.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

a vida é chuvosa
os dias de sol
são curtas noites de sonho


Farei uma parada técnica. A gente se vê em algumas semanas.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - V

Um mês de chuva enjoada fazia daquele Agosto um Agosto como deveria ser. Dona Candinha, numa gastura, visitava a área de serviço e só pelo cheiro já sabia, mas apalpava mangas e barras das camisas no varal - lavar calça nem pensar -e, merda de chuva, a roupa não seca direito, fica essa morrinha de umidade mofada; imagina se fizer fritura, que nhaca. A senhora do 501 enojava-se do aspecto pegajoso dos grampos de madeira, meio verdes, quando ouviu a gritaria. Atocaiou-se perto da janela e viu. Da janela, o vizinho do 703 gritava que sua vagabunda, você não faz uma porra dessas comigo, passa pra você ver, passa pra você ver. Lá embaixo, protegida pelo telhadinho de zinco da entrada do bloco, sua mulher, Margarida, olhava com desprezo e medo e gritava que você é doente, não aguento mais teu ciúme, você me deixa louca, cansei, cansei dessa vida, olha aqui você machucou meu braço, seu monstro, vou na delegacia da mulher, cansei, quero ver você se foder, brocha do caralho. Vermelho de ódio por ver sua débil virilidade assim exposta, ele que meu pau ainde sobe, não pra você, cheia de estria, correu pra dentro e pegou um grande pote de bolachas vazio pintado a mão de florzinhas, acho que pela mãe, não lembro, que se foda. Segurando com ambas as mãos pra fora da janela, voltou a gritar e a ameaçar. Se passasse, jogaria, na cabeça, te mato sua vadia. A mulher desafiava, que passaria e ele não seria louco, todo mundo olhando, testemunhas. Não se via um vizinho na janela, embora todos estivessem assistindo à cena de camarote. Não havia segredos. Ela deu dois passos e o velho teve que dividir sua vida, antes e depois do pote, antes e depois, antes já foi, que depois? Jogou. Margarida, corpulenta, coxas grossas, pernas firmes e ainda belas, recuou rapidamente. O pote explodiu no chão e voou caquinho até na folhagem da Dona Aretusa. Rarrarrá, você errou, velho cego, e correu pra nunca mais. O velho ainda teve tempo de pegar outro pote, ainda pela metade dos biscoitos da páscoa, e jogar. Errou, já era tarde. Olhou pela janela, voltou a chover, garoinha. Fechou. Os vizinhos abriram. O velho enlutaria por longos dias. Quem vai limpar essa merda, só nisso pensava Sêo Osvaldo. Anoiteceu já no silêncio. Mais tarde, um vira-latas que passava por ali comeu os restos do casamento de trinta anos espalhados pelo chão.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - IV

Devia ser sábado pois fazia sol e a criançada toda estava na rua, ou melhor, vagando pelo condomínio. No verão - acho que era - é sempre assim. Os cupins e as crianças ganham asas e vão por aí, meio sem rumo, sempre em hordas. Então estas estavam lá, parece que jogando pedra nos morcegos que dormiam ressaqueados nas árvores mais copadas, quando ouviram um lamurio fino. Betinho pediu silêncio pra ouvir e todos começaram a farejar com os ouvidos o chão pra ver de onde vinha aquilo. Deram volta no guapezeiro do meio, mais dez passos, passa o boldo da Dona Filó, ali, debaixo da betoneira quebrada. Um gatinho! Nesse momento Claudinho torceu pra que todos pensassem como ele e brincassem de mirinha no bicho, quase falou, mas a prudência valeu-lhe, pois a piazada ficou comovida com a criatura. Guilherme tomou a dianteira e foi fazer festinha na cabeça do gato mas percebeu que a situação ainda não era permissível a carícias, então segurou e levantou o coitado com simulada grosseria. Teve pena, mas não poderia passar por bicha pros amigos. Erguido e exposto como um troféu, o animal gemeu mais alto que nunca e deixou evidenciada a debilidade que o fazia sofrer. Tá prenha! Olha, barrigão, deve ter uns dez aí. Põe ela de volta, imbecil, com cuidado! Eliminado por maus-tratos, Guilherme afastou-se mordendo os lábios de raiva. Beto, usando toda a experiência que não tinha com animais gestantes, pegou a gata no colo e levou-a pra perto dos prédios. Buscaram roupas velhas e leite, tudo muito bem escondido, fizeram uma caminha atrás do bloco B e passaram a apreciar o sofrimento da parturiente. Numa última cartada, Guilherme fez piada pedindo para a sofredora fazer respiração cachorrinho, no que foi prontamente incompreendido e mandado embora. Onde já se viu falar de cachorro numa hora dessas. O parto demorou a tarde toda. A mãe quase exauriu-se e os filhotes eram bolinhas de pelo e sangue. Eram tão nojentos que alguém até pensou se valiam tanto trabalho. Pareciam até os morcegos de mais cedo. De qualquer forma, lá estavam. Seis novas criaturas miantes. Sêo Hélio, o zelador manco, passou e viu o que acontecia. Estavam todos fodidos, a síndica ficaria sabendo. Anoitecia. Beto determinou que todos deveriam se revezar em turnos de sentinela. Dois conscritos por vez garantiriam a segurança até o amanhecer. O esquema de proteção funcionou perfeitamente até as 10 da noite. A partir de então imperava o toque de recolher imposto pelas mães. Jorginho, o encarregado da hora, subiu com a promessa de olhar pela janela, o que de fato fez com louvor até as 11, fim do seu período. A partir daí o ninho ficou desguarnecido. Mãe e filhotes dormindo, ninguém tomou o leite, até que são bonitinhos. Foi assim o último relatório. Durante a noite, as crianças eram crianças demais e dormiam fatigadas demais naquele sono pesado e sereno que só as crianças conseguem ter. Por conta disso, só os adultos ouviram uma madrugada inteira de gemidos de terror que vinham de algum lugar no vão dos prédios. Dona Filó odiava gatos e levantou às seis incrivelmente disposta a degredar os bastardos. Saiu de casa em pantufas de pano pra não fazer barulho e voltou sem tê-lo feito. Não eram nem oito da manhã daquele domingo cinzento quando, um a um, os piás foram chegando para ver como estavam os gatinhos. Muitos traziam víveres. No entanto, conforme iam se aproximando e percebendo a cena configurada, iam se juntando ao grupo de embasbacados. O chão pintado de sangue, um quebra-cabeças de tripas, perninhas, rabinhos e - claro - cabeças. Da mãe, nem sinal. Terror, terror. Estavam incrédulos e alguns sugeriram que deviam pegar o Guilherme, aquele doente. Fariam também dele mosaico, perninha cá, bracinho lá, cabeça. Viram só? Tem uma cabeça meio comida ali. Onde? Fernandinha passou, ia buscar jornal de domingo pro pai, grandão e pesado, só olhou, disfarçou. Ei, quem tem coragem de jogar nela uma tripinha?

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - III

Três semanas mais tarde foi ele quem tentou espatifar-se contra a calçada, para horror e desespero das senhoras que, do chão, contemplaram duas indesejáveis bolas pendentes de um saco escroto e sem escrúpulos. Completamente nu, gritava as mais desconexas frases que um pretenso suicida jamais pronunciara. A única palavra que a audiência distinguia com clareza era "gravata", o que em nada fazia avançar a compreensão do lamentável monólogo. Após acionados polícia e bombeiros e já com o Cabo Guimarães pronto para, da janela do andar de cima, efetuar o bote de salvamento e imobilização, o sujeito desceu da janela e entrou em seu apartamento. A pausa dramática que se estabeleceu prolongou sofrivelmente o tempo. Na eternidade do primeiro minuto após o sumiço, todos esperavam pelo estampido seco de um derradeiro tiro que lhe abriria a cabeça, executado provavelmente no banheiro. Só o silêncio ecoou. Mais dois minutos e ainda. Cabo Guimarães, em nítida insubordinação que lhe custaria o posto, hesitava em investir contra a janela do apartamento em flagrante medo de virar ele o morto do circo armado, a vinte metros do chão, pendurado num barbante vermelho. Em dez minutos, nada havia mudado. A platéia, desanimada, começou a dispersar, voltando cada um a sua ocupação anterior, Gilson do bloco B a lavar seu Comodoro branco com a água do condomínio, os adolescentes a jogar truco na calçada, Dona Filomena a tentar identificar quem era o novo namorado da moça do 402 - o sexto só esse ano, o segundo gordo e o primeiro a usar sapatos. Restaram apenas os mais velhos e as mais crianças. O suicida, enfim, não voltou mais. Meia hora depois, quando os policiais arrombaram a porta do apartamento, encontraram o bêbado já de cuecas dormindo na mais fetal das posições que a meia-idade permitiria, ao lado de um copo com um líquido branco que - provou-se mais tarde - não passava de leite UHT semi-desnatado. Foi só então que a vizinhança pôde mensurar o tamanho da decrepitude que atacara o velho do 703.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - II

Numa tarde de quinta-feira atirou pela janela seu pequeno cachorro que virou três. A criançada, a princípio estupefata, não tardou a mexer com gravetos as entranhas do animalzinho, procurando entender como aquela massa ensanguentada era o tal do organismo sobre o qual falavam as aulas de ciências. Lá de cima, o velho ficou apenas olhando os piás executarem as exéquias e demais ritos fúnebres que tiveram lugar, concluída a investigação forense. Tinha o olhar grave, não sorria nem chorava. Contemplava ou menos que isso. Ele não estava lá, diria mais tarde Sêo Sebastião, contador aposentado e leitor entusiasta de Zíbia Gasparetto, seu olhar estéril indicava um corpo vazio jazendo sem alma. Os restos de toby foram enterrados aos pés do sombreiro do Sêo Cláudio - sem seu consentimento. Sete dedos de profundidade, é o certo pra animais. Sem contestações, Cristiano, após a demonstração de conhecimento da arte, tomou o posto de sacerdote-chefe da cerimônia e passou a conduzí-la. Determinou que no fundo da cova da profundidade determinada deveria haver uma caminha de folhas. Afimou que não, jamais procederia ao enterro sem a dignidade de uma caixa de sapato para fazer as vezes de ataúde. Prontamente atendido por Dona Candinha, sepultou o pobre animal sob uma improvisada cruz de galhos. Decretou que não voltaria a jogar bola no dia e subiria para pensar, sei lá, to meio mal. Todos fizeram o mesmo, exceto Guilherme que sentou numa calçada próxima ao túmulo e de lá o olhou fixamente por meia-hora, até que sua mãe o chamou. Quando ia embora, viu que o Velho continuava na janela, com o mesmo olhar de medusa. Teve um mau pressentimento que só passou na primeira colherada da sopa de feijão que sua mãe prepararia naquela noite.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - Partida

Começo agora minha primeira investida de mais fôlego nessa brincadeira com as palavras. Confundindo imaginação e memórias, pretendo reescrever as existências anônimas que me roderaram - eu, um outro anônimo - nos meus primeiros vinte anos nesse mundo. Trajetórias banais, problemas mesquinhos, desses que não dão romance. Morei a maior parte desse tempo em condomínios de classe média/baixa e nesses locais a própria vida de muita gente é comunitária, seus dramas são exposições permanentes que a audiência não hesita em visitar, comentar e discutir para, por fim, refutar, desprezar e detestar. São, portanto, obras de arte. Com isso não quero dizer que essa maneira de viver é ruim ou pior que a vida hermética das casas apartadas por jardins murados. Talvez seja, talvez seja melhor, não sei. Sei que é como é, e como é é a maneira como a vivem. Os textos sairão em forma de fragmentos, que é o jeito que tenho de contar as coisas. Postarei com mais frequência que de costume, por isso fiquem atentos. O fio condutor será a saga de um velho e o amor que por ele nutre a solidão. Por fim, aviso: Os personagens são todos fictícios embora não sejam nem um pouco irreais. Desejem-me boa sorte que vos desejo boa leitura.

* * *

Aos domingos, aparecia mais bêbado que de costume e não conseguia subir as escadas. Mijava nas calças sentado no corredor, gritando o que poderiam ser tanto blasfêmias quanto sonetos de Camões - era impossível distinguir. Por alguma espécie de milagre específico para almas decaídas, nessas circunstâncias seu indestrutível radinho de pilha só tocava Agnaldo Timóteo, o que sempre o fazia despejar sobre aquela poça de álcool e urina um rio de meio-litro de lágrimas abundantes. O choro farto e soluçado causavam também alguma compaixão nos vizinhos. Só alguma. Era a única situação em que estes lembravam que o velho saco de merda, como o apelidara Aretusa, a Impetuosa do 303, já fora um agradável colega de condomínio. A conversa boa e a considerável sofisticação - era o único do bloco que oficialmente já havia pisado numa universidade (agronomia, trancou quando casou, no sexto período) - colocaram-no noutros tempos numa posição de tamanha respeitabilidade que nas reuniões condominiais seu voto costumava ser seguido por, pelo menos, meia-dúzia, de modo que não era raro voltar das assembléias com pratinhos de bolos, coxinhas e outros quitutes que sempre dividia com a criançada do prédio - o que realimentava sua boa fama. Mas três anos são mil na convivência diária de um formigueiro e o espólio dessa dignidade toda era a insignificância percebida aos domingos. Era quando algum vizinho - que preferia fazê-lo em anonimato, ciente de que sua atitude era digna de reprovação pelos demais condôminos - deitava ao lado do montinho um pão com margarina e café-com-leite frio num copinho de criança, destes com tampa e biquinho, feito para as criaturinhas ainda incapazes de manter um copo sério em pé. O velho possivelmente tinha mais dinheiro em conta que seu benfeitor, mas a fome de solidariedade das pessoas havia sido alimentada durante tanto tempo com pão que qualquer outro tipo de ajuda poderia render uma congestão. Dona Germana apenas tolerava esse sinal de fraqueza dos colegas porque ver o velho ser tratado como mendigo causava-lhe íntimo gozo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Juro que não bebo

Sou esse sujeito imundo que te olha e te pede e te implora. Um pouco do seu dinheiro, do troco da miséria que te sobra. No bolso perdido, escondido, jogue. Na minha cara, em mim, por favor, por compaixão à minha detestável existência de podridão. Sujeito a tudo, aos humores, ao tempo, à morte. Da esperança, espero, uma moeda, por favor. Limpo seu chão, lavo, lambo limo. Pode até olhar pro lado, desviar o nariz pois fedo, fedo, fedo um horror, não me importo. Cague, eu limpo, espero, denovo, fede, mais uma vez, eu limpo. Pode gritar comigo, sou merda, mande-me trabalhar, vagabundo, marmanjo, mas jogue. Jogue uma moeda, pode ser com força. Em mim, na minha cara, veja, não há dentes. São restos do resto que resto. Diga que sou o que faço de mim, concordo, abaixo a cabeça, eu me humilho. Por um pedaço desse papel do bolso, imito um cachorro, quer ver? agora? Assim, rolando. Só te peço. Juro que não bebo. Aceito tudo. Sou um rato, não me importo. Vivo isso, tenho paz. Jogue uma moeda, por favor, não quero atrapalhar. Se você quer ouvir, sim, tenho família, precisam comer. Leite, ônibus, remédio. A puta que pariu, com todo respeito, senhor. Vá tomar sua cervejinha, você merece, a vida é dura, permanente pau no cu. Sem fugir, é foda, não dá. No sábado, até whisky. Não como eu, vagabundo vadio, cão sarnento, pra lá pra cá. Só pedir, deitar, rolar, lamber a mão. Tá lá, din-din, fácil. Vida fácil. Juro que não bebo. É mole, facinho. Um pão, é ali na padaria, margarina. Joga aqui, não precisa encostar. Na minha boca, aqui, joga, está aberta. Vê? Não tem dentes. Juro que não bebo.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Toque de recolher

O telefone tocou histérico na madrugada. Acordei sobressaltado, já pensando nos velhos da família. Descalço, mesmo, nem senti a cerâmica fria, ziguezagueei meio trêbado de sono e quando enfim achei o desesperado aparelho, o abusado parou de tocar. Diabo de ligação. Trezentos batimentos por minuto, tremo como um hamster acagalhado. Já sentia a mesma palpitação que vez ou outra me ocupa há quinze anos, desde uma outra noite violada pelo gritar de um outro telefone. Lembro-me bem: ao toque, seguiu-se um choro contido, passos pela casa, luzes que iam acendendo progressivamente, as vozes cada vez menos constrangidas em romper o silêncio. Primeiro mamãe – que atendeu a ligação – depois vovô, meu irmão mais velho e uma prima que na época morava em casa. Tia Zica tinha morrido. Aparentemente aquilo ainda não era assunto pra mim, moleque de doze anos, mas encarcerado em minha alcova mofada, pude sentir o cheiro de talco da velha encrenqueira que nos visitava aos domingos. Depois disso ninguém mais na família morreu à noite, ainda que alguns tenham definhado miseravelmente - dando ao infortúnio de suas mortes a forma de uma corriqueira presença. Eram parentes pra voltar de viagem e, quando chegassem, em vez de abalarem, trariam de volta a ordem perdida e, consequentemente, algum acalento.

Esperei em frente ao telefone por mais alguns minutos. Vai que toca de novo e será o trabalho de ir e voltar. Não tocou. Fui até a janela e quando me dei conta estava com um cigarro na boca. Olhava as ruas, como ficam bonitas assim, reluzindo o amarelo que vem dos postes, os semáforos piscando a toa. São realmente bonitas as ruas vazias e silenciosas, livres da vulgaridade que as mesquinharias da vida ordinária lhes conferem. Fumei mais um pouco até sentir frio. Fechei a janela e a cortina mas, antes de sair, espiei furtivamente abrindo com um dedo a cortina pra ver se aquela pintura não era uma farsa, se ao dar as costas alguma coisa se moveria. Não, tudo continuava igual.

Deitei na cama que já estava fria. Foi o tempo de cobrir e me virar, o telefone voltou a tocar. Não pensei mais nos velhos, mas como se repetisse a cena, o aparelho emudeceu com a minha presença. Caminhei até a cozinha, abri a geladeira, fechei, olhei para a mesa, abri novamente a geladeira, tornei a fechá-la. No deserto da minha cozinha, a única coisa que se sobressaía era a garrafa térmica, altiva, sobre o deprimente lascado balcão de laminado azul. Um gole de café no meio da madrugada é de foder, mas não resisti. Ainda estava quente e, num copinho americano, o café preto é também uma agradável experiência estética e sinestésica. Voltei à janela, agora com a bebida na mão. Primeiro, a olhada escondida, depois abrindo-a sem vergonha. Mais um cigarro apareceu em minha boca, mas dessa vez, bem, o café estava lá, fazia sentido. O silêncio era mineral e as luzes continuavam amarelas. Nem um maldito cachorro aparecia, nem uma lâmpada se apagava.

Estava novamente voltando pra cama, abri mais uma vez a frestinha na cortina, nada, fechei. Nada? Não tinha certeza, na verdade não tinha prestado atenção. Mais uma espiada e, ah!, lá estava um sujeito caminhando pela rua. Vinha tranquilo, passos simétricos, mãos nos bolsos. Descia a Faria Lemos sem olhar pros lados. Era como se fosse às três da tarde, tinha a objetividade de quem vai à padaria pedir pão bem branquinho. Chegando à praça 12 de Julho, mudou seu rumo para um orelhão solitário perto das lixeiras. Não hesitou por meio segundo. Segurou o fone e com a mesma mão – a outra permaneceu no bolso – discou os números (ou assim parecia proceder). Foi o tempo de apertar as oito teclas e meu telefone tocou. Uma pedra de gelo subiu-me pela espinha, lambuzou-me o pescoço, caiu faceiro e se alojou em meu estômago. Atendi de primeira e ouvi a voz do outro lado dizer Vá dormir. Pensei que não seria prudente desobedecer a uma ordem tão peremptória dada àquela hora da noite. Voltei à cama e de lá só saí com o sol na janela, me acordando despiedosamente.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Vingt et cinq

Hip Hip Hurra! Hip Hip Hurra! Hip Hip Hurra!

domingo, 12 de julho de 2009

O homem que sorri e que gargalha

Com enormes poucos dentes brancos de branqueamento químico, sorri este homem podre de vontades distorcidas. Que quererá ele, em pé, soberbo, no meio da praça, na mira dos olhos dos passantes que se esforçam por serem indiferentes. Tem nas mãos algo intrigante que brilha de reflexo, puro medo do sol que cai lá em cima. Ele olha, e sorri, e gargalha a gargalhada dos desesperados, das pobres almas incapazes de controlar o pensamento. As calças mijadas de pavor, os pés encardidos de miséria, é estátua de semblante esvaziado. Continua sorrindo e gargalhando o infeliz das roupas cinzas da fumaça, da areia, do pó que os outros tiram no chuveiro quando chegam em casa. Que têm nos pulmões as pessoas de bem que olham sem respeito e cospem pensamentos de desprezo? Que tem no intestino o grosso sujeito digno, de virtude, resoluto na moral mais putrefata? E ele olha, e sorri, e gargalha, e aponta o céu com todos os dentes que lhe faltam na boca, cheiro de merda. Enquanto os outros passam, indo sem sentido pra lugar algum. Até que tudo passa, e a noite madruga sem transtorno. E os cachorros refugiam-se sem lamento aos pés do pobre homem de olhos amarelados que morreu e continua ali, em pé. E a noite passa, e o dia chega e todos chegam e no passo apertado passam pelos mesmos caminhos. Não olham o defunto que olha, e sorri, e gargalha com poucos dentes e barba horrível de banho nunca dado. E é assim que tudo vai, vão-se todos cruzando vias e abaixando os olhos quando passam por ele, sujeito da existência lastimável, que sorri e que gargalha.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Saber muito ser ignorante


I
Memórias

Desde pelo menos a minha mais remota lembrança, tenho uma certa compulsão por aprender. Tinha pressa de aprender a ler e escrever, coisa que “só” aprendi aos três anos e meio; tinha pressa de aprender a amarrar os cadarços, mesmo que mamãe sempre me fizesse desfilar com portentosas sandálias de couro; tinha pressa de aprender a ver as horas do ponteiro, ainda que fosse demorar muito pra eu compreender o significado do tempo. Aos cinco, aprendi a jogar xadrez vendo meu tio e meu avô jogarem. O mesmo avô me ensinou a jogar baralho nessa mesma época e me fez entrar, bem poucos anos depois, na roda oficial do pife das tardes de sábado no Sêo Dinancor. Cheio de curiosidade, pedi à minha mãe que me ensinasse a fazer alguns pontos de tricot e alguma coisa de bordado, saberes dos quais fui desistindo de mansinho, sem fazer alarde nem chamar a atenção para meu evidente insucesso. Também a meu pedido, foi ela quem me ensinou a costurar na máquina e a fazer bolos (o primeiro, se me lembro bem, foi aos 11). Com 10 anos já tinha aberto alguns brinquedos suposta ou verdadeiramente estragados e suposta ou verdadeiramente os consertei, já havia fechado uma porção de jogos de vídeo-game e, por conta disso, dominava rudimentos do inglês.

Mas como nem só a casa é local de aprendizado, também direcionei minha ânsia por conhecer à escola. Falo isso frequentemente nas rodas de amigos e com frequência soa como piada, mas me lembro perfeitamente do momento exato em que aprendi alguns pontos elementares do meu currículo escolar. A revolução industrial foi na quarta-série, numa aula de estudos sociais. A expressão apareceu na terceira linha do primeiro terço do quadro (“lecionar é dividir o quadro em três”). Eu sentava na primeira ou segunda fileira a partir da porta de entrada, provavelmente na terceira carteira. Acho que foi numa terça. O evolucionismo darwinista foi em casa, eu tinha 11 anos e lia o livro de ciências (cuja capa era dum verde musgo contaminante) na cama de cima do beliche do meu quarto. A janela estava aberta, era uma tarde de tempo bom. Em ambos os casos senti uma sensação maravilhosa, o mundo se descortinando pra mim, me convidando para entrar, dar uma voltinha, conhecê-lo. Coisas que eu não podia ver, um protozoário, a Inglaterra do século XVIII, mas que agora eu sabia que existiam.

O caminho para o conhecimento nem sempre foi fácil, entretanto. Lembro de quantas coisas entraram no meu caderno sem eu me dar conta. Aparentemente já estavam ali há algum tempo, e quando me dava conta de suas existências olhava para os lados, como quem pergunta: ela já ensinou isso?, mas com vergonha acabava não revelando minha ignorância. Na maioria das vezes, tratava-se de uma aula que eu havia perdido ou por tê-la faltado, ou por ser um faltante presente. No segundo grau tornaram-se famosas minhas viagens de 10, 15 minutos, nos quais meus olhos se perdiam no horizonte e meu contato com o mundo material se resumia a um quase-nada. Uma dessas lições perdidas foi o substantivo. Que diabos é um substantivo? Sabia o que era um verbo, um adjetivo, um advérbio e até um adjunto adnominal se tornou familiar pra mim, mas substantivo, que diabos. Por exclusão, deduzi que substantivo era aquilo que não era nenhuma das outras coisas, ou seja, ao mesmo tempo é tudo e é nada. Um dia me deram a dica de que substantivo é aquilo que se pode tocar. Era falha, já que alma, vida e morte também são substantivos, mas vocês sabem, uma dica falsa nos faz perder muito tempo.

II
Devaneios

Conhecimento é poder. Essa máxima, tão verdadeira, tão enganosa. Precisei crescer pra aprender isso. Não foi nada fácil e tenho certeza que ainda não aprendi em todas as dimensões esta lição. Afinal de contas, saber qualquer coisa que seja te abre alguma porta. O sujeito que sabe cozinhar com maestria pode se dar ao luxo de posições políticas heterodoxas e ainda assim terá a casa frequentada. Conhecer os caminhos para o sucesso financeiro te garante uma vida materialmente confortável. Dominar o conhecimento produzido por uma área do saber te garante, no mínimo, um título e, quem sabe, algum reconhecimento no meio. Mas esta é apenas a face verdadeira do poder do conhecimento. Afinal, de que vale, por exemplo, ter a casa frequentada e viver em solidão? Ou dormir em lençóis da mais pura seda e nela sofrer a angústia de não poder comprar uma vida nova? Ou então ter os louros do reconhecimento por algo que você mesmo não dá importância? O conhecimento só garante a si mesmo.

Na verdade, nem isso. Quem realmente sente prazer em aprender coisas novas – e nesse momento lembrei dos filósofos e de como devem rir lendo esta minha filosofia de boteco – conhece a dinâmica em que se dá esse processo. Aprender é como caminhar num brejo, ou na expressão já consagrada, num terreno movediço. Você dá um passo adiante, progride, muda de substância, acha que evoluiu, que está seguro, mas em pouco tempo começa a afundar e precisa dar um novo passo e mais um e mais um. Só que esse brejo (ou esse terreno) é infinito. Não há margem segura e só se tem duas escolhas possíveis. Parar e afundar ou dar um passo mais e começar a afundar meio metro adiante, e adiante, e adiante! Isso significa que quando você para para olhar para (travalíngua) trás e ver o caminho que já percorreu, admirar a paisagem da sua sabedoria, você está afundando nela. Se demorar, é possível que não consiga mais se mover, então, keep walking.

Mais que paradoxal, é trágico. Quando está aberto ao novo, você só aprende alguma coisa para desaprender no instante seguinte (e vamos tirar dos olhos a lama da metáfora). O saber é feito dessa matéria etérea, volátil, inconstante. É, por sua natureza, pesado como chumbo mas se desfaz com o ar, se você permite arejá-lo. Infelizmente isso não é muito comum e vê-se muitos quixotes tristes que saem por aí montados em seus velhos pangarés de conhecimento, iluminados pela luz fraca e opaca das histórias de cavalaria de outros tempos. E isso não é difícil de acontecer. Ouso dizer que, em alguma medida, acontece com todos. Quem não enche o peito ao dizer “EU SEI”?

Sempre me fez, e agora me faz ainda mais sentido a imagem do sábio silencioso, a do silêncio como resposta. É um ideal, claro, que representa a humildade que devemos ter diante do conhecimento das coisas do mundo, a prostração diante da nossa insignificância diante do tudo (em seu lato sensu). Por isso, busco cada vez menos usar o tom peremptório, definitivo. Escrever suas convicções na pedra, pra quê? Para depois, de picareta em punho, sair destruindo o que foi gravado? Ou é para não precisar jamais ter novas convicções? Parafraseando o que Eduardo Galeano falou sobre a utopia, acho que o conhecimento não serve pra nada a não ser para te fazer caminhar tentando (sem sucesso) alcançá-lo em definitivo. É a sombra na caverna, é o rabo do cachorro.

Enfim, são só devaneios e a essa altura abandono o tema que me motivou a escrever este texto sem nem ao menos citá-lo. Sim, exatamente, quando abri o editor de texto planejava comentar sobre algo que venho ruminando há alguns dias, inquietação resultante da leitura de um livro. Vou abortar o tema com a promessa de retomá-lo muito em breve, esforçando-me para não ser prolixo. Ou melhor, é uma quase promessa. Vai que amanhã acordo e dessa reflexão só encontro a lembrança?

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Poesia de Alberto Caeiro

Fiquem com ele, que sabia das cousas bem mais do que sei eu.


Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que idéia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...
"Sentido íntimo do Universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O café-com-leite que tranquiliza


A imagem da serenidade pra mim é um copo de café-com-leite. Café-com-leite quente, mas não pelando, cheio até a borda no copo de requeijão ou americano. Bastante açúcar, nem muito claro, nem muito escuro. Café-com-leite às cinco e meia da tarde, sem pressa, mas sem preguiça e sem cansaço. Nada de cappuccino, nem espresso corto nem cem-por-cento arábica. Café do mercado do bairro, o que estiver em conta, e leite de pacotinho, tipo C. Solúvel, nem pensar. Sob o sol ainda firme se for verão, sob o laranjal do lusco-fusco se for primavera, sob o céu cor de cimento se for outono, sob a penumbra do frio se for inverno. Acompanhado de pão com margarina e só, sem modéstia, sem pretensão. O café-com-leite de quem vai vivendo, sem buscar novos sabores, sem sofrer pelo que não pode, sem querer o que não conhece. Quando eu flerto com o cotidiano e miro na vizinhança uma pessoa tomando assim no fim da tarde o seu café-com-leite, sem fazer dele uma refeição faustosa, sem também por isso deixar de tomá-lo, alimentando-se porque é animal, de café-com-leite porque é cultural, sinto-me contagiado pela tranquilidade. Sim, pois num mundo que não é nem anterior nem posterior à cafeína e à tecnologia nutricional, mas que corre alheio a estas, como que no seu fusca velho mas original e que não sente a menor vontade de olhar para o lado quando para no sinal pra ver o carro que lá está; nesse mundo que não tem respostas porque não faz perguntas, o café-com-leite pode ter uma agradável ação ansiolítica.

domingo, 31 de maio de 2009

Mundo Imbecil


Prólogo

Que mundo imbecil, que mundo imbecil, que mundo imbecil. Não consigo pensar outra coisa. De verdade, como é imbecil. Tenho uma dor atroz nas costas, na coluna, nos músculos, nos ossos, no sangue. Não consigo nem ler, nem escrever, nem virar o pescoço. Bonito, combina com meu espírito velho de velho ranzinza. Afinal, o mundo é imbecil e não há porque não sê-lo. Levantaria da morte para dizê-lo. Ênfase na ênclise entusiasmada. Imbecil-cil-cil. Pois veja, pego um exemplo, e um exemplinho de nada, assim ó, titica de galinha. Desses que você dá, indignado, e todo mundo te olha atravessado, com vergonha de te mandar a merda, e diz que sim, é verdade. (O corretor ortográfico me diz que merda não existe, será que eu existo? Elton. Ufa, existo. (Ufa não existe.))

Ato I
Os filmes, na televisão. Eu sei, é pegar pesado, mas leia até o fim. Os filmes da televisão. Todos têm censura, um numerinho que aparece no canto da tela, subindo de par em par, 12, 14, 16, 18, além, claro, do L. Pensemos agora (enquanto ainda conseguimos) no cliente preferencial da censura atual: sexo. Em tempo, mundo imbecil. O filme L ideal tem atores e atrizes sexualmente desmotivantes e, imagino, em breve evitará animais pois estes andam pelados. Num 12 clássico pode-se ver um beijo, as mulheres podem usar batom e, com alguma ousadia alguma delas pode tocar o próprio cabelo. Num típico 14 começam as metáforas-para-o-ato-sexual, logicamente, no nível 1: dormir com. São autorizados decotes em V cujo fim não ultrapasse a latitude do começo dos mamilos. Homens podem figurar sem camisa. A relação sexual é insinuada quando um casal se beija e cai na cama (talvez grama) enquanto a câmera se levanta e filma o teto (talvez estrelas). Nos 16 as coisas começam a ficar quentes. Sim, é a hora dos peitinhos. São permitidos até 3 peitinhos cujos mamilos não estejam eriçados (há registros de até 5, 1 eriçado). O ato sexual é completo, ou seja, um homem e uma mulher (isso sempre sempre sempre) deitam e rolam na cama, semi-nus e vez ou outra um deles encosta no seio (dela) ou na bunda (dele). No plano moral, é a hora de se ouvir “fazer sexo”, pois estamos nas metáforas-para-o-ato-sexual de nível 2 . Enfim, chegamos aos 18. É nessa idade, quando já votamos há 2 anos, já trabalhamos há 2 anos, já podemos ser mesários de eleição, já podemos servir ao exército (e pegar em armas), já podemos ser presos, já podemos casar e já podemos ser nomeados em cargos eletivos, que, enfim, podemos ver uma vagina. Mas não exatameeeente uma vagina, e sim os pelos (muitos, muitos pelos) pubianos que indicam que ali, em algum lugar debaixo daquela camada de pudor, há um órgão sexual feminino. Tradicionalmente, pintos eram excluídos da exibição televisiva. Pintos simplesmente não entravam. Mas os tempos são outros, os valores se perderam, a família está desestruturada e eis que vez ou outra, numa média de 2 por ano, pintos dão o ar da graça na tevê. Não qualquer pinto, claro, tem que ser um bem molinho e de preferência minúsculo. Pinto duro dá cadeia e ponto final. Claro, chegamos também ao nível 3 das metáforas-para-o-ato-sexual, e vou te comer e foda-se são permitidos.

Ato II
Isso tudo sozinho já parece suficientemente ridículo, mas ah, o mundo é imbecil. Há um outro tema sobre o qual a censura exerce seu poder bélico: a violência. Resumidamente, é assim: L: briga de socos. 12: armas, tiros e morte. 14: armas tiros, morte, explosões, sangue e membros decepados. 16: armas de destuição em massa, metralhadoras, decapitações, muito sangue, centenas de mortos, explosões monstruosas. 18: tudo é permitido. Ah, mundo imbecil, mundo muito imbecil. Coloca todo tipo de restrições, interdições, místicas, paranóias, bulas papais e pelos pubianos sobre o corpo humano, a coisa mais democrática e durante muitas horas da vida de quase todo mundo também a mais divertida. Todo homem tem pinto e toda mulher tem peito, uns mais, outras menos, mas todos têm! Que diabo faz ser muito mais aceitável pessoas sendo mortas violenta e friamente que a exposição do corpo que todo mundo tem? Eu disse que era imbecil. E muito imbecil. Se não fosse, ohhhh, pedofilia, o filme da vida íntima dos jovens de 14 anos talvez tivesse censura 18, ou melhor, nem isso, pois, enfim, ereções... Ah, como é imbecil. O corpo é caro demais e a indústria da pornografia lucrativa demais para que a exibição pública das condições anatômicas naturais comuns a todos os humanos seja tolerada.

Epílogo
Desse mundo imbecil eu soube agora que em Santa Catarina foram recolhidos das escolas 130.000 livros, preciso repetir, CENTO E TRINTA MIL LIVROS (LIIIIVROOOS) do Cristóvão Tezza porque os entendidos em educação acharam que ele não tinha uma linguagem adequada para jovens do ensino médio. Linguagem chula. SIM, estavam achando que o Tezza iria ensinar palavrões para os inocentes adolescentes de dezesseis anos! E o pior, ele usou uma metáfora terrível para se referir ao órgão sexual feminino: pêssego! Ohhhh, pêssego não, isso já é demais!

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Embalado a vácuo


Estou vazio. Meus dedos estão murchos, enrugados como se tivessem sido embebidos por cem mil anos na mais morninha água. Meu cérebro escorre pelo nariz, como ranho, com o ranho, como ranho. Torço com a força que eu não tenho meus pensamentos e só o que pinga miseravelmente é um nada sem dor e sem cor. Está aberta a temporada de caça-palavras, pois a estação do silêncio chegou. Por deus. Sou feliz por ter meus livros já escritos na estante.

sábado, 23 de maio de 2009

Anti-Hermes Silencioso


Estou encolhido num canto e meu coração bate como o de uma galinha. Espremido na esquina onde um rachado muro de concreto velho encontra a parede chapiscada de uma garagem estranha. Ouço o silêncio das televisões que gritam a novela das oito como que me jogando na cara que o dia morreu e me mandando dormir. No céu, meia dúzia de estrelas me olham com angústia. Estas estrelas que me viram nascer e que, malditas, me virão morrer; parecem rir da patética condenação ao patético que é ser inevitavelmente sozinho e ter que se esforçar pra não se mostrar uma evidente repetição. Estrelas que me viram nascer e que me virão morrer, que viram os homens antes de mim nascerem, até o primeiro, e testemunharão os próximos morrerem, até o último.

Carrego numa mão um pedaço de pedra, talvez um tijolo ou sobra de concreto. Seguro com violência, como se a pedra fosse a minha coragem e fosse um bicho arisco que não aceita ser preso. Sou uma criança, tenho os pés descalços e uma camiseta surrada. Tremo de frio pra não achar que é de medo. Mais uma vez, o silêncio, agora o dos passos de algum estranho caminhando junto ao muro. Meu coração não quer se calar e tenho que fechar a boca para que não escape, ele também. Num pulo, seguro o cimo quase com a ponta dos dedos, pra me levantar, vou dobrando os cotovelos e ralando os braços, o peito, a cara. Vejo que é uma pessoa, só poderia ser uma pessoa, mas não quero saber quem é. Estamos no breu, as estrelas ridículas são testemunhas tão passivas que não podem sequer iluminar a cena. Estou resoluto, em cima do muro. Atiro a pedra com violência, ouço um grito de dor, jogo-me ao chão como se não fosse eu, mas um saco de lixo fedido. Corro sem pensar e sem praonde, como um anti-hermes silencioso.

sábado, 16 de maio de 2009

A morte (é) premeditada

Naquele bar de velhos velhos penados, as almas eram pesadas. Só mais um sujo boteco numa rua imunda de uma cidade esquecida de um triste país num terceiro mundo qualquer. Nem as putas frequentam o lugar, não porque os velhos dali são velhos, pois velhos também anseiam gozar, mas porque são velhos de almas miseráveis e bolsos piores. Se uma por ali aparecia, era pra beber barato a própria miséria de ser uma puta velha sem valor no mercado dos prazeres carnais, tão dominado pela tristeza juvenil e até infantil dos peitinhos incipientes mas carnudos dos dezesseis anos. Ali ninguém a tocava, e se trepava era por misericórdia e era de graça.

Nesse bar se encontravam desgraçados, não pra lamentar qualquer coisa, se suas vidas eram horríveis, delas não se poderia fazer filmes ou livros. Não viveram grandes amores, dramas ou tragédias. Apenas viveram, meio a contragosto, sempre sem paixão. Encontraram na cachaça o asilo para a perseguição da vida compulsória. Não era a descrença nem um saber elevado nem as decepções que os levavam ali. Era uma miséria que sentiam e que não poderiam expressar porque não a conheciam. Estavam vivos e viver era melhor com álcool. Assim esqueciam que existiam.

Pouco conversavam, não havia muito a ser dito. E quando diziam, não iam longe. Discutiam mesquinharias da vida ordinária, que cidade fica mais perto de que cidade, o nome de uma rua, o ator daquela novela de 79. Ficavam nisso. Não havia televisão, não comiam. A mesa de sinuca era pra adolescentes que vinham e iam e nada mudavam. Não lamentavam nada. Não brigavam. Nada disso faria sentido pois não eram tristes - tristes eram suas vidas. Estavam lá porque eram obrigados a existir e o suicídio era algo em que nunca haviam pensado. Aliás, não havia porque fazer isso se no fim iriam morrer de qualquer forma.

Um dia o bar não abriu. Na porta, um bilhete. O chapinha, um dos ébrios, havia morrido. Alguma coisa no coração que os médicos não se preocuparam em descobrir o que era. Afinal, já estava morto. E se ainda vivo era um corpo sem quem o reclamasse, que seria morto? Seu funeral estava vazio. Os bêbados não foram. Acharam outro lugar onde beber. O dono do bar, que não era bêbado mas tinha a alma embriagada, aproveitou o pretexto e ficou em casa de cueca vendo televisão. Foi enterrado no túmulo da família. Não acharam uma foto pra colocar ao lado da de seus pais. Ficou pra depois. No dia seguinte, o bar abriu. Os bêbados ficaram felizes, puderam voltar. Falaram sobre o chapinha, lamentaram, ninguém chorou.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Patos nunca são cachorros

Vou centralizar neste blog algumas coisas que tenho escrito por aí. O que posto agora encontra-se num fotolog inativo e foi postado em 03 de março de 2006. Naquele momento fazia muito sentido pra mim. Eu precisava falar sobre mudança, transformação e também sobre a queda pra dentro que é atingir um objetivo e perceber a pequenêz de tudo. O texto eu faria bem diferente, hoje, mas vale a mensagem, ainda que um bocado piegas. Acho que foi a única fábula que escrevi. (em formato de versos)

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A quem não sabe matizar, resta a insânia

Patos nunca são cachorros

Um dia vi um pato
que queria ser cachorro
tentou latir
tentou bater o rabo
tentou até roer um osso
coitado, não tinha dentes
mas ele queria muito ser cachorro
seus amigos-patos lhe falavam:
ser cachorro é até bacana
mas agora tá difícil
mas o pato não ouvia
corria de bando em bando
procurando dar um jeito
"quero mesmo é ser cachorro"
era o que dizia
e não era um absurdo
nesse mundo as coisas mudam
mas não desse jeito
um dia ofereceram-lhe pêlos
"que feiura um pato peludo!"
não aceitou, afinal
queria mesmo era ser cachorro
e continuou com sua busca
não tardou, porém, ele cansou
"para um pato, ser cachorro é impossível"
e num negócio desleal
aceitou tornar-se rato
"isso está ao meu alcance"
uma vez rato, deixou os patos
seres sonhadores
e tocou sua nova vida
nos esgotos, nos lixos
mas um dia foi terrível
encontrou um cachorro
que faminto, quis comê-lo
chorando, contou que fora pato
e que quisera ser cachorro
o cão parou
e riu, riu, riu
"e porque não virou cachorro, afinal?"
perguntou ainda rindo
"aprendi que é impossível"
falou o rato, que era pato, que agora quase não era nada
o cachorro riu que até lacrimejou
"de onde tirastes essa idéia?"
o rato, orgulhoso de seu aprendizado respondeu
"da vida, ora bolas"
"não te enganes, caro rato" retrucou o cão
"foi de ti, e apenas de ti que tirastes esta conclusão"
o rato, que sofria com aquela sessão de tortura prolongada, gritou
como quem se acha sabedor de muita coisa
"é possível, por acaso, um pato virar cachorro?!?!"
o cachorro não respondeu
virou-se e mostrou sua pata traseira esquerda
o rato, sentindo a barriga congelar, balbuciou
"é uma pata... de pato"
o cão contou então sua história
que fora pato e que quisera ser cachorro
passou pelas mesmas dificuldades do agora-rato
sofreu, penou
aprendeu também a mesma lição
"patos não podem mesmo ser cachorros"
mas pensou um pouco mais
e percebeu
que para que pudesse ser cachorro
tinha, primeiro, que deixar de ser um pato
e aprendeu, então, a olhar e a ouvir
percebeu que os amigos-patos tinham muito a lhe ajudar
muitos queriam também deixar de ser pato
descobriram, juntos, o caminho para se chegar a ser cachorro
não sem muita luta
dia a dia pensavam
"o que faz de um cachorro, um cachorro?"
"cachorros latem", disse um
"cachorros têm dentes" disse outro
"cachorros têm pêlos" disse ainda um outro
conforme iam aprendendo
seus corpos iam se modificando
até o momento em que se tornaram cães
o rato então objetou-lhe
"não és um cão completo, tens uma pata ainda de pato!"
o cachorro (ou o que mais se parecia com um na ocasião) serenamente respondeu
"é bem verdade, meu nobre" e continuou
"mas é que aprendi muita coisa nesse caminho... nada foi em vão"
"primeiramente, só serei um cachorro quando aprender a ser cachorro"
"e isso são se pode saber quando acontecerá"
"entretanto, mais importante que isso foi outro aprendizado"
contou então sobre alguns de seus amigos
que ao tornarem-se cães completos, enlouqueceram
ao descobrirem que cachorros também sofrem
e têm problemas como qualquer bicho no mundo
o que o quase-cão aprendeu com isso?
foram estas as suas palavras:
"para quem foi pato, poder ser um cão é o paraíso
mas para quem já é cão, ser um cão pode ser um sofrimento
o melhor então a fazer é deixar de ser um pato
sem nunca chegar a ser um cachorro
porque quem pensa ser um
abre mão do mais importante
que é querer sempre ser um cão"
o que aconteceu com o rato-que-foi-pato não se sabe
o que eu sei é que não foi comido pelo quase-cão-que-já-foi-pato
mas se ele aprendeu algo com aquela situação
já deve ter deixado de ser um rato
porque para um pato que um dia quis ser cachorro
aceitar ser só um rato é muito pouco e muito fácil
é patético

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Da epidemia e do sangue quente


Que surpresa boa saber que tanta gente leu e gostou do último post. Levo todos com muita estima. Como eu disse a uma pessoa que comentou ter lido o texto sobre o domingo, acho que se eu sobreviver à minha própria vida, lá no finzinho, no crepúsculo da existência, quando a luz da consciência se transformar num lusco-fusco efêmero, triste e lindo, vou me desfazer em memórias. Pois se aos vinte e quatro já as tenho com tanto apreço, que dirá aos oitenta (e que os deuses me permitam tal graça!). Entretanto fiquei um pouco preocupado.

É quente o sangue que oxigena este cérebro e estas mãos que lhes escrevem. Carrego ainda o ímpeto da juventude - que alguns carregam para sempre. Minha urgência de escrever nem sempre é de contemplação. Às vezes, preciso mesmo transcrever um sentimento colérico. Mas claro, nada é a toa. Acredito muito que uma certa raiva, uma revolta, são sentimentos de quem ama. É um estilo de amor, certo, tipico daqueles que, como eu, têm no coração um pulsar quente e violento. Amor que não é melhor nem pior que outros amores, é apenas o único jeito de amar a estes possível. Talvez um pouco trágico, encampo cruzadas contra os problemas mais insignificantes - talvez os elevo, assim, quase à categoria de males da humanidade. Mas isso é tão somente porque eu amo, e não falo só de mim, mas a partir de mim, dos milhões como eu. Discuto bem mais do que eu gostaria com a minha companheira, mas isso é apenas porque a amo absurdamente. E ela sabe que se um dia eu me calar, será o fatídico sinal de que meu amor virou brasa, ou pior, fez-se já em cinzas.

Mas por que este confessional e confuso prólogo? Com sinceridade, não há um porque. Apenas lembrei disso pois na segunda metade da semana passada nós todos começamos a ser bombardeados pela televisão com notícias sobre uma tal gripe suína. Logo no primeiro dia já pensei, pronto, após ter morrido de aids, ebola, gripe aviária, bactéria legal, protozoário assassino, terei a honra de morrer de gripe suína. Com a dignidade, aliás, de quem uma vez desencarnado, percorrerá os mundos em seu galante traje de espírito de porco. É brincadeira... Nossa sociedade tem um imenso sentimento de culpa por existir. Desde os mais remotos tempos olhamos para o céu nos perguntando quando a brincadeiria iria acabar, quando Ele, o dono da bola, viria tomá-la de volta. Inventamos fins do mundo que, ao não se realizarem, se renovam na expectativa de novos fins do mundo. Viver é bom demais para ser verdade e seremos castigados. A mídia sabe disso. E sabe mais, que além dessa paranóia apocaliptica, temos historicamente fatos preocupantes, como a peste negra que dizimou 1/3 da população européia ou a gripe espanhola que vitimou 60 milhões de pessoas. Isso torna o medo a mercadoria mais vendida no mundo. Para além da já conhecida "teologia do cagaço" que manteve a igreja católica medieval em pé, a indústria do medo vende muitos remédios e muito, muito jornal. E foi isso que fizeram. O curto verão da gripe suína, aka H1N1, aka influenza a, durou uma semana. Hoje já suspeitam o que sempre souberam, que a terrível, letal, mortal, cruel, devastadora, genocida e apocalíptica gripe não passa de uma... gripe. Uma gripe mais forte, é verdade, mas uma gripe. E com que sarro vi matérias e matérias nos jornais sobre como 'identificar sintomas da gripe suína'. Dor de cabeça, febre, dor nos músculos, articulações... Será possível que acompanhando o homem desde seu surgimento ainda não sabemos identificar os sintomas de uma gripe?! Dir-se-á que, ora, uma gripe foi a gripe espanhola e fez o estrago que fez. Pois bem, em 1918 morria-se de apendicite (e as cirurgias eram feitas sem anestesia, com éter!). Além do mais, algo que em incomoda muito é o fato de saber que morre-se muito ainda hoje de doenças completamente sem graça. Não vendem mais jornal. São as feias e bobas cólera, malária, febre amarela... e a fome. Ah, se a inanição fosse contagiosa... Enfim, agora já começo a chover no molhado. As notícias são cada vez menores e mais raras. A maior vítima disso tudo até agora foi a liberdade. Pois muito obedientemente fechou-se um hotel, um país, uma planeta. Nos mais remotos lugares, pessoas pacificamente aceitaram o medo e medidas cautelares. O abraço foi proibido. Daqui a amanhã, numa nova devastadora epidemia de uma semana, talvez proibam o sorriso. Por fim, um dia chegará em que provarão os malefícios clínicos de se pensar.

domingo, 26 de abril de 2009

Manhã de Domingo

Manhã de domingo tem cheiro de banana frita, sair de pijamas do quarto, olho em remela, ir para a sala e receber bom dia. Era meu vô (desculpem, nunca tive avô, apenas um bom e velho vô) quem fazia, um de seus bem poucos dotes culinários - mas tinha que ser domingo. Comia no mesmo pratinho velho de plástico de sabe-se lá quantos anos e cujas bordas sabe-se lá há quantos anos eu gostava de mordiscar. Banana caturra, adorava bem fritinha, quase queimada, já com aquele leve amargor nas extremidades e com muito açúcar e canela. Comia com felicidade. Ao fim, o fundo do prato estava besuntado numa gordura doce mas já não tão apetitosa. As manhãs de domingo também soavam a globo rural, quando a arroba era apenas uma unidade de medida de peso e as maiores mazelas do mundo, pulgões, vassouras-de-bruxa, ferrugem e outras pragas agrícolas (durante a semana era o Esqueleto). Coisas que não faziam parte do meu mundo senão como o meu mundo das manhãs de domingo. Ainda não tomava nem café com leite - demorei pra entender o sabor forte do café - mas nunca cansei de admirar o vô tomando seu café-com-leite caiçara, ou seja, café preto com farinha de mandioca. Sempre me oferecia, rindo, troçando do meu asco infantil - talvez lembrando, talvez ignorando, ter aprendido a tomar o café assim também na infância, quando o leite raramente dava o ar da graça. Avançando a manhã, o cheiro do domingo era do jornal, volumoso, de páginas enormes e cuja tinta grudava até nos olhos na mais ligeira lida. Nunca gostei das páginas de jornal, inclusive porque eram grandes demais pra eu conseguir dobrá-las (não consigo me lembrar porque motivos eu as desdobrava, mas com certeza era a curiosidade de saber que diabo diziam aquelas minúsculas letrinhas) e acabava que eu as deixava jogadas ou dobradas muito porcamente, o que sempre me rendia alguma reprimenda. É incrível dizer isso, mas manhã de domingo também tem o cheiro da cabeça do vô, que sempre muito voluntariamente sentava-se ao sofá e servia-me seu ralo cabelo como diversão. Fazia penteados, sendo o moicano o meu preferido, assim como o "bozo". Mas o que gostava mesmo era de puxar seus cabelos com força. Ele não sentia dor no couro cabeludo, aliás, não sentia nada, nem dor nem calor nem frio. Eu podia puxar com força, mas que tomasse cuidado pra não descolar seu couro cabeludo, dizia. Nunca acreditei nisso. Pra mim ele apenas gostava de ter seu neto sob a sua cacunda brincando com seu cabelo e suas orelhas (havia me esquecido delas). Logo o vô saía de casa, como aliás fez todos os dias até que um dia foi seu último. Enquanto isso eu brincava com meus bonequinhos, via as séries de domingo na tv, como macguyver ou simpsons (sempre odiei barrados no baile) ou jogava a fita de master system se alguma eu tivesse locado na sexta-feira. Quando o vô voltava, era hora de almoçar e era sempre macarrão. Assim acabavam as manhãs de domingo, que são vivas nas minhas lembranças e que me dão esperança e desejo de voltar a tê-las com tanta serenidade e poesia em tanta simplicidade. Talvez seja impossível fora da infância, mas quem sabe, ao menos se um dia tiver um neto as minhas costas e se ainda houver bananas caturras a fritar...

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Ensinamentos da Igreja Católica Apostólica Paraguaia


Não usar camisinha é fácil, foda mesmo é manter o celibato!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

De celebridade instantânea a macarrão instantêneo

Quando todos acham que a internet não pode mais render uma boa surpresa, aparece algo que prolonga a validade da rede. Na semana que passou o mundo conheceu a simpática gordinha de monocêlha Susan Boyle, que foi arremessada de sua prosaica vida num vilarejo do interior da Escócia para o monitor de mais de uma centena de milhões de pessoas no mundo todo. E a mulher realmente tem talento. Voz fenomenal, simplicidade e a música que canta no video que circula parece ter sido feito pra ela (é um trecho do musical Les Miserables, outro grande sucesso, adaptação da obra de Victor Hugo, falando sobre sonhos de juventude mortos pela vida.) Mas infelizmente o mundo que permite que esse fenômeno aconteça (tudo ocorreu num programa do tipo American Idol do Reino Unido (aliás, do mesmo produtor), ou o nosso Ídolos), que se descubra o talento monumental na feia embalagem (como tem sido sempre o tom das resenhas e comentários a respeito) é o mundo que se apropriará destrutivamente desta simples mulher. Grandes estrelas midiáticas não pertencem a si próprias, e isso é ainda mais verdade para estrelas instantâneas. Enquanto o mundo dá olá à Susan Boyle, aquela Susan Boyle dá adeus ao mundo.

Isso não é apenas - afinal talvez também o seja - um olhar essencialista. O que encantou a mim e ao mundo não foi a simplesmente o talento musical da mulher exibido no video. Hoje, o talento está por todo lado. Aliás, já há talento de sobra nas interpretes da mesma música na Broadway. O que nos encantou da Susan Boyle foi aquilo que não vimos - mas imaginamos. A inocência já há tanto perdida, os desejos, a imposição da vida ordinária sobre nossos ridículos sonhos, a resignação, a persistência e enfim, a realização. Foi também a mensagem que nos chegou de que em algum lugar no mundo - talvez saindo da boca menos esperada - ainda existe algo que corresponde ao mesmo tempo aos nossos desejos de simplicidade, de originalidade, de humildade, de puros sentimentos transformados em arte; e também aos exigentes parâmetros de qualidade do nosso mundo (vamos lembrar das milhões de pessoas igualmente simples humilhadas neste e em programas congeneres por não atenderem a este elevado padrão de qualidade), parâmetros opressivamente técnicos. Tudo isso se acabará cedo ou tarde, e não veremos mais em Susan a mulher (e os sonhos, a inocência, etc) que vimos em I Dreamed A Dream. Sem dúvida podemos dizer que o sonho está se realizando. É bem possível que Susan seja feliz. Quanto a nós, continuaremos pagando nosso suplício eterno: cavar fundo a alma humana, encontrar o mais precioso diamante apenas pelo prazer de desfazê-lo em mil pedaços. Somos doentes. Se ainda duviam, leiam:

"Simon [produtor do Britain's Got Talent, o programa de TV] pode ver o potencial lucrativo de Susan. Ele não vislumbra apenas o lançamento de um disco dela na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas também um filme e produtos de merchandising", confidenciou ao jornal "Daily Star" uma fonte próxima a Cowell.


http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2009/04/22/susan-boyle-pode-ter-sua-vida-transformada-em-filme-755375125.asp

domingo, 19 de abril de 2009

Ouvidos Caninos

Não sou Cassandra, mas tenho uma trágica qualidade: ouvidos caninos. Não, eu não tenho o maldito ouvido absoluto, que sinto vontade de duvidar existir, e minhas habilidades musicais são pífias. Pergunte-me o que é um sol maior e te darei uma resposta astronômica. Meus ouvidos caninos, e olhe, isso é uma expressão que inventei pra mim (embora possa e deva já ter sido inventada por outrem), são uma desagradável percepção dos sons. Especialmente sons miúdos, altas frequências. Desde criança consigo dizer se há uma televisão ligada em casa. Nas madrugadas mais tranquilas, sabia dizer se havia alguma nos apartamentos vizinhos. Não graceje, não falo de ouvir o som dos autofalantes da televisão, pois eu sei da televisão mesmo quando o volume está baixo demais para ser ouvido ou mesmo mudo. Simplesmente ouço o som que a televisão emite quando ligada. Som de aparelho eletrônico ligado, um piiii constante e irritante. Além da tv, há também aparelhos de ar-condicionado, computadores, e, talvez os campeões, nobreaks. Esses sons, que a maioria aprendeu a chamar de silêncio, pra mim compõe a sinfonia da tortura, em seu crescendo de intrusão. Para você ter idéia do tamanho do desconforto que sinto com esses sons, imagine que pra mim, o prazer de desligar uma televisão é comparável ao de tirar os calçados depois de um longo dia. Meus ouvidos gozam. Mas os momentos de prazer são raros. A maior parte do tempo, passo em busca de um silêncio quimérico, um desejo erótico pela ausência de som que agraciaria minha alma. Mas meus ouvidos caninos são tristes por saberem que, em vida, o silêncio é impossível. Por isso, quando quero paz, vou de canto a canto, procurando o melhor recanto para os ouvidos. Então, se algum dia você me surpreender dentro do guarda-roupas, não se assuste, eu estarei apenas lendo.

sábado, 18 de abril de 2009

O Ébrio de hoje

Eu juro que vi isso hoje, o que não significa que tenha acontecido.

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Às 5 da tarde, três homens sentados à mesa do bar. Um deles tem a palavra. Ostenta o pior cabelo que alguém pode ter, pior até que não ter cabelo: um corte ao estilo Ney Latorraca. Bigode acinzentado, expressão séria. Os outros dois ouvem com atenção quando ele diz

Você sabe o que é chegar aos sessenta e três...

Pausa dramática. O copo vai à boca e nela escorre um suave gole. Seca os lábios. A audiência, à qual nesse momento somava-se eu, apreensiva. Via amargura naquela frase, quem sabe uma vida de agústias e desejos incompletos, sonhos humildes e irrealizáveis, solidão amarga. Típico desabafo de um ébrio cujo único desejo que lhe resta é ter em seu derrareiro abrigo apenas outros ébrios loucos a chorar e a desabafar. Mas o senhor de olhar impenetrável, continuou

... dando duas por semana?

terça-feira, 14 de abril de 2009

O Marujo

A revista piauí promove um concuso literário mensal. É dada uma frase e você deve compor um texto em que a frase aparareça com algum sentido. No mês passado concorri com esse texto.

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O Marujo

Era fim de tarde e os últimos fiapos da luz vermelha do crepúsculo já se iam perdendo. O homem rude de expressão fechada entrou em sua casa e, executando o hábito adquirido há apenas um ano com a morosidade de quem o fez há trinta, passou um café forte e o tomou sem açúcar. Aposentado fisicamente por conta de uma hérnia de disco e moralmente pelo fato disso acontecer enquanto ainda possui braços volumosos e fortes, passa os dias remoendo as memórias do que sem querer foi sua vida.

Viajou o mundo todo, teve tantas mulheres quantas foram as noites solitárias em terras estranhas. De algumas destas, traz tatuagens, de outras, cicatrizes. Lembra-se de países que o mundo já se esqueceu. Não se sabe se apesar ou por conta disso, e a despeito do que povoa a imaginação dos sonhadores, nunca gostou de lugar algum que em sua existência peripatética tivesse conhecido. O único lugar de que gostava era exatamente o único lugar de onde fugira e pra onde prometeu jamais voltar. Réu confesso, entregou-se ao mundo como castigo auto-infligido. Pelo menos foi o que acreditou muito tempo atrás, mas durante três quartos de sua vida pensara toda noite, com uma religiosidade que não tem o maior dos cristãos em suas preces, que não passava de mais um ser feito desse repugnante medo e que tem a vida como algo que vale mais que a dignidade. Somente agora que as luzes dessa existência começam a fraquejar é que se dá conta de que a culpa e a vergonha de tê-la salvo fizeram-no enterrá-la fundo na culpa e na vergonha de nela sentir algum prazer.

Era esse o homem que sentava sozinho para tomar café amargo, pois havia vivido a vida inteira sozinho e apenas amargo é que poderia morrer. Decidido que estava a utilizar este tempo último que lhe restara simultaneamente com e sem saúde – o que só poderia ser o poder divino já anunciando que sua sentença estava lavrada – para pensar sobre si mesmo, desejava apenas matar o tempo antes que o tempo desse o troco. E se pensava em si não era por ter-se como a única pessoa que valesse o pensamento, mas por não ter conhecido ninguém mais. Abriu a mesma pequena mala de couro marrom com presilhas de cobre que usara em sua fuga quarenta anos atrás e a descobriu mais vazia que então. Encontrou fotografias de mulheres que talvez tivessem tido pra ele alguma importância. Lamentou não lembrar de nenhuma. Abriu algumas cartas e iniciou sua leitura, mas fazê-lo era como abrir um livro nunca lido em uma página qualquer: falava-se sobre pessoas desconhecidas com seus sentimentos desconhecidos. Viu um envelope velho, ainda lacrado e sem selo algum. Era certamente a mais velha das cartas. A letra parecia conhecida, mas não pôde se lembrar de quem era. Iniciou a leitura. Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Parou. Tomou mais um gole do café que já estava frio. Aconteceu, então, que pela primeira vez desde a esquecida infância, este parricida chorou.