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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dona Janira

Na última vez em que vi Dona Janira ela cortava batatas pra cozinhar com seu habitual e inescrutável alheamento. Usava a faca velha e grosseira com a habilidade de quem precisa. Logo iria morrer e não estava pra poesia. Enfim, era aquilo? Cortar batatas? Passei pela porta, ela notou minha presença, mas como sempre eu não valia um olhar de soslaio. Dona Janira não gostava de mim porque não havia porquê. Pra quê? Um pai filho da puta, um marido inepto, filhos escrotos e meia dúzia de canalhas sórdidos lhe davam a porção suficiente de homens de que precisava pra saber que eram uns bostas. Não me acercava porque ela enfim estava certa, mas tanto rancor me encantava. Queria me aproximar daquele mar de lástima, me ajoelhar em suas margens e nele ver meu rosto refletido. Os desgraçados se procuram. Mas Dona Janira só procurava as mulheres. Devotava a elas o carinho do desprezo que cuspia sobre os homens. Eu acreditava que a velhice lhe traria a resignação, mas só o que chegou foi a morte de suas amigas. O que mais? Quando sua preferida morreu, depôs as armas. Mas em vez da abertura, descobriu o silêncio. Deixou de responder os monossílabos funcionais e descobriu o prazer da não resposta. Era isso a velhice? Descobertas que chegam tarde demais? Receber as tintas quando o quadro já está todo pintado e repintado e sujo e rebocado? Pouco tempo depois soube que Dona Janira havia matado o marido enquanto este dormia e fugido pro nordeste com uma amiga 20 anos mais nova. Levaram o carro. Deixou na barriga do infeliz a faca de 40 anos que ela vinha usando pra cortar batatas e que guardava na garganta. Decidiu que pintaria o verso.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pervinha

Sou uma putinha de bairro. Aquela que você vê andando por aí de shortinho e top. Tenho a pele encardida e faço o máximo que posso com meu cabelo. Minha clientela não é exigente. Quando é alguém de fora, perde tempo olhando, tentando descobrir se sou puta ou andarilha mendiga maltrapilha. Demora acostumar o olho, mas quando acham a carne defumada na fumaça do asfalto que eu habito, querem me carregar na boca prum canto escondido, feito uns vira-latas. Os homens me curram com força as derrotas de suas vidas. Sou eu que engulo a porra da miséria da humanidade. Quando me penetram, é um mundo que eu recebo de pernas abertas. Quando gemem, são palavras de ordem que eu libero; quando gritam, é a revolução que não aconteceu. Sem mim, o mundo que me despreza não existiria. Faço parte do rol de coisas e seres misturados que constroem seu próprio infortúnio - que os outros chamam de civilização. Estamos do começo ao fim. Plantamos a semente da comida que os alimenta e recolhemos a merda dos dejetos que despejam. Somos invisíveis porque necessários demais para que o orgulho nos aceite. Eu aceito. O preço das escolhas que não fiz nas oportunidades que não tive. Me divirto mais que as outras. Mais que a senhora decente que recata a puta que a habita com o hábito da virtude; essa puta que o marido procura nas ruas sujas em que me encontra. Posso dançar o que quiser, beber o quanto quiser daquilo que eu quiser. Não preciso me importar com as aparências. Meu jogo é limpo, eu sei o que eles querem, eles sabem o que eu dou. Nunca me deram um livro, já ganhei perfume - acho que eu fedia. Nunca me deram flores, já ganhei uns socos - acharam que eu merecia. Nunca recebi uma proposta de casamento, já perdi a conta das orgias - todos achamos bem mais gostoso. Não alimentem ilusões, eu sou o útero do mundo. Vinde a mim, os fodidos. Trabalhadores do mundo, fodei-me.

terça-feira, 18 de maio de 2010

De quando me descobri morto - Ato único

Após a ducentésima madrugada de trabalho na mina, descobri que estava morto. Se ainda me viam andar, falar e extrair carvão das paredes infinitas é porque, uma vez imersos os homens na escuridão mal iluminada, as sombras encarregam-se de protagonizar a existência. É assim, de tal forma, que não importa que morram todos - e estavam todos mortos, só então descobri - as sombras continuarão dando movimento e som ao lugar. E os homens que feitos sombra mexem seus corpos etéreos, constituídos de ausência, da luz que não chega a um certo espaço, num certo tempo, não imaginam que não vivem, porque a própria capacidade de imaginar é faculdade exclusiva dos viventes. Assim, tampouco eu vislumbrava que a morte me atacara sem que eu me apercebesse. Foi muito por acaso, ou fruto de uma maquinação muito diabólica, que me dei conta de meu estado. Aconteceu ao fim daquela ducentésima noite incompleta - só quem vê a madrugada (que é uma só) partir sabe que ela se vai sempre sem sucesso, derrotada, incapaz de impor-se sobre os dias (esses, sempre outros) que vêm sempre sorrateiros; quem dorme vive a ilusão da ordem, da sequência, e ignora a batalha que se trava no silêncio. Mas lá estava eu, caminhando para o portão de evacuação. Ao sair da mina tive os olhos de morcego perfurados pela jovem luz da manhã de verão que, sempre apressada, chega antes que os todos. Eu não tinha olhos, tinha apenas a certeza de não tê-los. Mas o que me doía na face era real como o sol do horizonte, deveria estar lá. Levei num impulso as mãos a esses olhos e dei-me com mãos que eram minhas e que não eram pás, picaretas ou carrinhos. Havia mãos, e nelas, braços. Com ambos segui o reconhecimento de um meu corpo alheio. Apalpei-me o ventre como uma criança aperta um animal de pelúcia investigando seu interior. Eu deveria ter vísceras, pois doíam ao toque insensível de minerador. Senti que era ar e não densa poeira carbonífera que me entrava pelas narinas e que, em mim, descia a um pulmão incansável, embora esgotado. Um coração começou a bater em meu peito e dali para artérias e veias e cada terminação nervosa de meu corpo entrou como em estado de euforia e pude sentir cada fluxo, do líquido biliar à meiose da espermatogênese; das sinapses ao ácido úrico acumulando na bexiga. Saindo das trevas, descobri um corpo inquieto. Beirava o insuportável essa plena sensação corporal pois era como se, ao encontrá-lo, tivesse assumido em minúcias o controle de toda função fisiológica. Nada era despropósito. Se esquecesse de batê-lo, o coração pararia. Eu era todo corpo, e quando você é todo corpo você está morto; pois o que é que enterram nas covas, nas sepulturas, nas minas?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Um elton judeu

Na semana passada, vi um homem esterilizar um pedaço de ferro na chama de uma lamparina. Em seguida, enfiou o ferro em meus olhos - sim, nos dois. Minutos antes, este homem me perguntou se eu era judeu. Não esqueço aquele olhar inexpugnável. Não sou. Releu a ficha, voltou com o mesmo olhar. É Zimmermann. Judeu. Só pode ser judeu. Mas isso ele disse com os olhos - os dele. Um pouco antes disso eu lia Philip Roth, judeu, contando a história de um jovem judeu que tenta fazer as coisas direito, mas só toma no olho - naquele. O oftalmologista deve ter sentido algum prazer em furar os olhos desse judeu envergonhado, travestido de gói, judeu sem bar-mitsva, sem pessach, e, glória a deus, não circuncidado. Resolveu fazer em mim um Dia do Perdão involuntário no mundo sem autoclave. Quase capotei com a anestesia. Teto preto, teto preto. Ufa, voltei. O sujeito não botou muita fé nesse judeu infiel. Respira fundo que passa. Saí babando com os olhos furados e o taxista carioca teve tempo de me contar três histórias de doença nuns 56 palavrões. Puta merda, que dia judeu. Passou. Ontem fiz lentilhas. Com costelinhas de porco, não exatamente kosher. Acho que não dou certo como judeu. Uma pena, estava começando a gostar da ideia. Pelo menos os olhos parece que estão bem.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Juro que não bebo

Sou esse sujeito imundo que te olha e te pede e te implora. Um pouco do seu dinheiro, do troco da miséria que te sobra. No bolso perdido, escondido, jogue. Na minha cara, em mim, por favor, por compaixão à minha detestável existência de podridão. Sujeito a tudo, aos humores, ao tempo, à morte. Da esperança, espero, uma moeda, por favor. Limpo seu chão, lavo, lambo limo. Pode até olhar pro lado, desviar o nariz pois fedo, fedo, fedo um horror, não me importo. Cague, eu limpo, espero, denovo, fede, mais uma vez, eu limpo. Pode gritar comigo, sou merda, mande-me trabalhar, vagabundo, marmanjo, mas jogue. Jogue uma moeda, pode ser com força. Em mim, na minha cara, veja, não há dentes. São restos do resto que resto. Diga que sou o que faço de mim, concordo, abaixo a cabeça, eu me humilho. Por um pedaço desse papel do bolso, imito um cachorro, quer ver? agora? Assim, rolando. Só te peço. Juro que não bebo. Aceito tudo. Sou um rato, não me importo. Vivo isso, tenho paz. Jogue uma moeda, por favor, não quero atrapalhar. Se você quer ouvir, sim, tenho família, precisam comer. Leite, ônibus, remédio. A puta que pariu, com todo respeito, senhor. Vá tomar sua cervejinha, você merece, a vida é dura, permanente pau no cu. Sem fugir, é foda, não dá. No sábado, até whisky. Não como eu, vagabundo vadio, cão sarnento, pra lá pra cá. Só pedir, deitar, rolar, lamber a mão. Tá lá, din-din, fácil. Vida fácil. Juro que não bebo. É mole, facinho. Um pão, é ali na padaria, margarina. Joga aqui, não precisa encostar. Na minha boca, aqui, joga, está aberta. Vê? Não tem dentes. Juro que não bebo.

domingo, 12 de julho de 2009

O homem que sorri e que gargalha

Com enormes poucos dentes brancos de branqueamento químico, sorri este homem podre de vontades distorcidas. Que quererá ele, em pé, soberbo, no meio da praça, na mira dos olhos dos passantes que se esforçam por serem indiferentes. Tem nas mãos algo intrigante que brilha de reflexo, puro medo do sol que cai lá em cima. Ele olha, e sorri, e gargalha a gargalhada dos desesperados, das pobres almas incapazes de controlar o pensamento. As calças mijadas de pavor, os pés encardidos de miséria, é estátua de semblante esvaziado. Continua sorrindo e gargalhando o infeliz das roupas cinzas da fumaça, da areia, do pó que os outros tiram no chuveiro quando chegam em casa. Que têm nos pulmões as pessoas de bem que olham sem respeito e cospem pensamentos de desprezo? Que tem no intestino o grosso sujeito digno, de virtude, resoluto na moral mais putrefata? E ele olha, e sorri, e gargalha, e aponta o céu com todos os dentes que lhe faltam na boca, cheiro de merda. Enquanto os outros passam, indo sem sentido pra lugar algum. Até que tudo passa, e a noite madruga sem transtorno. E os cachorros refugiam-se sem lamento aos pés do pobre homem de olhos amarelados que morreu e continua ali, em pé. E a noite passa, e o dia chega e todos chegam e no passo apertado passam pelos mesmos caminhos. Não olham o defunto que olha, e sorri, e gargalha com poucos dentes e barba horrível de banho nunca dado. E é assim que tudo vai, vão-se todos cruzando vias e abaixando os olhos quando passam por ele, sujeito da existência lastimável, que sorri e que gargalha.

domingo, 19 de abril de 2009

Ouvidos Caninos

Não sou Cassandra, mas tenho uma trágica qualidade: ouvidos caninos. Não, eu não tenho o maldito ouvido absoluto, que sinto vontade de duvidar existir, e minhas habilidades musicais são pífias. Pergunte-me o que é um sol maior e te darei uma resposta astronômica. Meus ouvidos caninos, e olhe, isso é uma expressão que inventei pra mim (embora possa e deva já ter sido inventada por outrem), são uma desagradável percepção dos sons. Especialmente sons miúdos, altas frequências. Desde criança consigo dizer se há uma televisão ligada em casa. Nas madrugadas mais tranquilas, sabia dizer se havia alguma nos apartamentos vizinhos. Não graceje, não falo de ouvir o som dos autofalantes da televisão, pois eu sei da televisão mesmo quando o volume está baixo demais para ser ouvido ou mesmo mudo. Simplesmente ouço o som que a televisão emite quando ligada. Som de aparelho eletrônico ligado, um piiii constante e irritante. Além da tv, há também aparelhos de ar-condicionado, computadores, e, talvez os campeões, nobreaks. Esses sons, que a maioria aprendeu a chamar de silêncio, pra mim compõe a sinfonia da tortura, em seu crescendo de intrusão. Para você ter idéia do tamanho do desconforto que sinto com esses sons, imagine que pra mim, o prazer de desligar uma televisão é comparável ao de tirar os calçados depois de um longo dia. Meus ouvidos gozam. Mas os momentos de prazer são raros. A maior parte do tempo, passo em busca de um silêncio quimérico, um desejo erótico pela ausência de som que agraciaria minha alma. Mas meus ouvidos caninos são tristes por saberem que, em vida, o silêncio é impossível. Por isso, quando quero paz, vou de canto a canto, procurando o melhor recanto para os ouvidos. Então, se algum dia você me surpreender dentro do guarda-roupas, não se assuste, eu estarei apenas lendo.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Ai, a televisão - 1º bloco

Quem já teve o desprazer de assistir à transmissão de alguma partida de futebol – e quem nunca o teve? - sabe como essa experiência pode ser extremamente desconfortável. Um jogo de futebol é uma coisa exageradamente simples. Para alguém que conheça as regras básicas do esporte, qualquer partida é auto-explicativa. Jamais vai acontecer de, no meio do jogo, os times misturarem os jogadores, de colocarem uma “bola-extra” ou de o juiz parar a partida para ir tomar uma cervejinha e comer um risóles de carne no boteco da esquina. Ademais, se acontecer, todos sabem que é excepcional, irregular, não vale. Igualmente, saber o nome do jogador com a bola em nada interfere na compreensão do lance, também pouco importa saber que o goleiro de tal time é o “mais vazado” do campeonato ou se a mãe de outro jogador se chama Dália, tem 59 anos, é dona de uma pastelaria na baixada fluminense e que só assiste aos jogos do filho com uma imagem de são jorge na bolsa (a mesma há 20 anos). O que quero dizer é que ninguém precisa de ajuda pra assistir a um jogo de futebol. Narrá-lo e ainda comentá-lo é um exercício de multiplicação dos pães informativo. É espremer o que a realidade tem de mais óbvia, fazê-la render. Que diabos, alguém precisa que uma pessoa – geralmente bastante desagradável – diga que “fulano chutou a bola” quando seus próprios olhos tiveram a dadivosa chance de fazer essa mesma observação?! É preciso que alguém diga, grite, grite loucamente “gol” quando isso é evidente? O que eles estão querendo? Atingir algum nível profundo da realidade encoberto sobre esse nível enganador da aparência? Acabar com o fetichismo do jogo de futebol? Longe disso. Independente de todas as interpretações mais ou menos conspiratórias, que julgo válidas, acredito que “ao nível de sua apresentação” esse tipo de transmissão é o aprofundamento do banal, o ridículo de óbvio meticulosamente exposto. Evidentemente, poderíamos ir além, afinal, o show de horrores continua quando, ao fim do jogo, os jornalistas correm para o gramado para que os jogadores façam aqueles perspicazes comentários como “nosso time teve a felicidade de marcar um gol no primeiro tempo mas no fim do jogo tivemos a infelicidade de tomar um gol e saimos com um empate que não é tão bom como uma vitória”. Aqueles que concatenam três frases sem erros graves de gramática viram comentaristas após se aposentarem. Enfim...