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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dona Janira

Na última vez em que vi Dona Janira ela cortava batatas pra cozinhar com seu habitual e inescrutável alheamento. Usava a faca velha e grosseira com a habilidade de quem precisa. Logo iria morrer e não estava pra poesia. Enfim, era aquilo? Cortar batatas? Passei pela porta, ela notou minha presença, mas como sempre eu não valia um olhar de soslaio. Dona Janira não gostava de mim porque não havia porquê. Pra quê? Um pai filho da puta, um marido inepto, filhos escrotos e meia dúzia de canalhas sórdidos lhe davam a porção suficiente de homens de que precisava pra saber que eram uns bostas. Não me acercava porque ela enfim estava certa, mas tanto rancor me encantava. Queria me aproximar daquele mar de lástima, me ajoelhar em suas margens e nele ver meu rosto refletido. Os desgraçados se procuram. Mas Dona Janira só procurava as mulheres. Devotava a elas o carinho do desprezo que cuspia sobre os homens. Eu acreditava que a velhice lhe traria a resignação, mas só o que chegou foi a morte de suas amigas. O que mais? Quando sua preferida morreu, depôs as armas. Mas em vez da abertura, descobriu o silêncio. Deixou de responder os monossílabos funcionais e descobriu o prazer da não resposta. Era isso a velhice? Descobertas que chegam tarde demais? Receber as tintas quando o quadro já está todo pintado e repintado e sujo e rebocado? Pouco tempo depois soube que Dona Janira havia matado o marido enquanto este dormia e fugido pro nordeste com uma amiga 20 anos mais nova. Levaram o carro. Deixou na barriga do infeliz a faca de 40 anos que ela vinha usando pra cortar batatas e que guardava na garganta. Decidiu que pintaria o verso.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Um sonho

Sempre quis ter um bar. Manter bigode, cultivar barriga, arregaçar as mangas e viver com um paninho sujo no ombro, sempre pronto pra dar uma limpada não muito generosa no que quer que seja. Já trabalhei em multinacional, quase engravatado, dava conselhos, ordens, recebidos e tinha rês-estagiários. Aprendi a desossar codorna. Na juventude fui preso, levei porrada da polícia e panfletei pelo fim de alguma coisa. Não cheguei a ser infeliz, mas não tinha lá muito tesão. Por isso - ou a despeito disso - me casei três vezes e não tive filhos. Nas separações, dei mais do que pediram. Não queria construir uma catedral no meio do brejo. Tentei conhecer o mundo, mas fui assaltado na Nicarágua e passei a achar a idéia ridícula e cansativa. Sempre dormi vendo a national geographic e, de mais a mais, não queria ter um café em Paris. Meu sonho, o único, era um bar com expositor de fórmica, vina em conserva e duas mesas velhas de sinuca. Eu serviria cervejas sem sorrisos nem grosserias. 75 centavos a ficha. Não faria promoções nem descontos. A música do rádio. Palito de dente. Comprei um bar falido e fui feliz por não ter filhos pra me acusarem de ter desperdiçado a herança deles. Não reformei nada. Não abri. Passei seis meses tomando o estoque, comendo as vinas, as cebolas em conserva e depois os amendoins. Passava os dias passando o pano nas mesas. Só servia a mim. Quando acabaram as balas do troco, não aguentei e saí. Que derrota, não morrer. Estou pensando em abrir.

terça-feira, 18 de maio de 2010

De quando me descobri morto - Ato único

Após a ducentésima madrugada de trabalho na mina, descobri que estava morto. Se ainda me viam andar, falar e extrair carvão das paredes infinitas é porque, uma vez imersos os homens na escuridão mal iluminada, as sombras encarregam-se de protagonizar a existência. É assim, de tal forma, que não importa que morram todos - e estavam todos mortos, só então descobri - as sombras continuarão dando movimento e som ao lugar. E os homens que feitos sombra mexem seus corpos etéreos, constituídos de ausência, da luz que não chega a um certo espaço, num certo tempo, não imaginam que não vivem, porque a própria capacidade de imaginar é faculdade exclusiva dos viventes. Assim, tampouco eu vislumbrava que a morte me atacara sem que eu me apercebesse. Foi muito por acaso, ou fruto de uma maquinação muito diabólica, que me dei conta de meu estado. Aconteceu ao fim daquela ducentésima noite incompleta - só quem vê a madrugada (que é uma só) partir sabe que ela se vai sempre sem sucesso, derrotada, incapaz de impor-se sobre os dias (esses, sempre outros) que vêm sempre sorrateiros; quem dorme vive a ilusão da ordem, da sequência, e ignora a batalha que se trava no silêncio. Mas lá estava eu, caminhando para o portão de evacuação. Ao sair da mina tive os olhos de morcego perfurados pela jovem luz da manhã de verão que, sempre apressada, chega antes que os todos. Eu não tinha olhos, tinha apenas a certeza de não tê-los. Mas o que me doía na face era real como o sol do horizonte, deveria estar lá. Levei num impulso as mãos a esses olhos e dei-me com mãos que eram minhas e que não eram pás, picaretas ou carrinhos. Havia mãos, e nelas, braços. Com ambos segui o reconhecimento de um meu corpo alheio. Apalpei-me o ventre como uma criança aperta um animal de pelúcia investigando seu interior. Eu deveria ter vísceras, pois doíam ao toque insensível de minerador. Senti que era ar e não densa poeira carbonífera que me entrava pelas narinas e que, em mim, descia a um pulmão incansável, embora esgotado. Um coração começou a bater em meu peito e dali para artérias e veias e cada terminação nervosa de meu corpo entrou como em estado de euforia e pude sentir cada fluxo, do líquido biliar à meiose da espermatogênese; das sinapses ao ácido úrico acumulando na bexiga. Saindo das trevas, descobri um corpo inquieto. Beirava o insuportável essa plena sensação corporal pois era como se, ao encontrá-lo, tivesse assumido em minúcias o controle de toda função fisiológica. Nada era despropósito. Se esquecesse de batê-lo, o coração pararia. Eu era todo corpo, e quando você é todo corpo você está morto; pois o que é que enterram nas covas, nas sepulturas, nas minas?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A Carta

Enquanto enrolava os miolos de pão que sobravam pela mesa, o velho atirava seu olhar para um canto qualquer, a fim de perdê-lo, e dizia, com a voz serena que durou uma vida para conseguir alcançar:

Passei muito tempo da minha pouca vida fazendo muitas coisas que se revelaram poucas. Tudo que ganhei foi um sentimento de vastidão desabitada.

À sua frente, eu o devorava. Seus olhos amarelos, a pele gasta, aquelas palavras que pareciam falsas de tão sinceras. Nada nele me parecia fortuito. Por isso, silenciava.

Agora, no crepúsculo da minha existência, quando é ridícula a própria idéia de mudar o destino, sinto-me como alguém que acordou tendo uma só tarefa para o dia mas que, ao levantar as pernas cansadas e deitar a cabeça ao travesseiro à noite, dá-se conta de que só não fez aquilo que devia, aquilo que queria.

Acabaram os miolos, eram já todos bolinhas. O velho pareceu dar-se conta de que, se não emendasse logo um desfecho, seu desabafo pareceria esconder algum ensinamento moral e ensinamentos morais, àquela hora da vida, era tudo o que mais queria que não existissem. Apontou agora seus olhos para os meus, que quiseram fugir das órbitas com a violência do olhar.

E você, filho da puta, um dia vai perceber a mesma coisa. Reconheço um cagado no mundo no escuro. Somos uma irmandade. Espero que não demore pra descobrir que se existe um sentido nisso tudo, ele deve estar amortecido pelo álcool e outros vícios.

Continuei ali, vendo o desespero e a solidão do velho. Ele continuou falando. Passou a vida lutando contra o silêncio e agora sofria por ter descoberto que perderia. Ali aprendi a calar-me. Lá se foram cinquenta anos de serena sobriedade. Hoje, no crepúsculo da minha existência, sufoca-me este sentimento de superpovoamento, de carregar no peito, o mundo. Não quero levar para o túmulo o peso das possibilidades. Por isso escrevo esta carta para ninguém, pois ninguém merece lê-la.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Toque de recolher

O telefone tocou histérico na madrugada. Acordei sobressaltado, já pensando nos velhos da família. Descalço, mesmo, nem senti a cerâmica fria, ziguezagueei meio trêbado de sono e quando enfim achei o desesperado aparelho, o abusado parou de tocar. Diabo de ligação. Trezentos batimentos por minuto, tremo como um hamster acagalhado. Já sentia a mesma palpitação que vez ou outra me ocupa há quinze anos, desde uma outra noite violada pelo gritar de um outro telefone. Lembro-me bem: ao toque, seguiu-se um choro contido, passos pela casa, luzes que iam acendendo progressivamente, as vozes cada vez menos constrangidas em romper o silêncio. Primeiro mamãe – que atendeu a ligação – depois vovô, meu irmão mais velho e uma prima que na época morava em casa. Tia Zica tinha morrido. Aparentemente aquilo ainda não era assunto pra mim, moleque de doze anos, mas encarcerado em minha alcova mofada, pude sentir o cheiro de talco da velha encrenqueira que nos visitava aos domingos. Depois disso ninguém mais na família morreu à noite, ainda que alguns tenham definhado miseravelmente - dando ao infortúnio de suas mortes a forma de uma corriqueira presença. Eram parentes pra voltar de viagem e, quando chegassem, em vez de abalarem, trariam de volta a ordem perdida e, consequentemente, algum acalento.

Esperei em frente ao telefone por mais alguns minutos. Vai que toca de novo e será o trabalho de ir e voltar. Não tocou. Fui até a janela e quando me dei conta estava com um cigarro na boca. Olhava as ruas, como ficam bonitas assim, reluzindo o amarelo que vem dos postes, os semáforos piscando a toa. São realmente bonitas as ruas vazias e silenciosas, livres da vulgaridade que as mesquinharias da vida ordinária lhes conferem. Fumei mais um pouco até sentir frio. Fechei a janela e a cortina mas, antes de sair, espiei furtivamente abrindo com um dedo a cortina pra ver se aquela pintura não era uma farsa, se ao dar as costas alguma coisa se moveria. Não, tudo continuava igual.

Deitei na cama que já estava fria. Foi o tempo de cobrir e me virar, o telefone voltou a tocar. Não pensei mais nos velhos, mas como se repetisse a cena, o aparelho emudeceu com a minha presença. Caminhei até a cozinha, abri a geladeira, fechei, olhei para a mesa, abri novamente a geladeira, tornei a fechá-la. No deserto da minha cozinha, a única coisa que se sobressaía era a garrafa térmica, altiva, sobre o deprimente lascado balcão de laminado azul. Um gole de café no meio da madrugada é de foder, mas não resisti. Ainda estava quente e, num copinho americano, o café preto é também uma agradável experiência estética e sinestésica. Voltei à janela, agora com a bebida na mão. Primeiro, a olhada escondida, depois abrindo-a sem vergonha. Mais um cigarro apareceu em minha boca, mas dessa vez, bem, o café estava lá, fazia sentido. O silêncio era mineral e as luzes continuavam amarelas. Nem um maldito cachorro aparecia, nem uma lâmpada se apagava.

Estava novamente voltando pra cama, abri mais uma vez a frestinha na cortina, nada, fechei. Nada? Não tinha certeza, na verdade não tinha prestado atenção. Mais uma espiada e, ah!, lá estava um sujeito caminhando pela rua. Vinha tranquilo, passos simétricos, mãos nos bolsos. Descia a Faria Lemos sem olhar pros lados. Era como se fosse às três da tarde, tinha a objetividade de quem vai à padaria pedir pão bem branquinho. Chegando à praça 12 de Julho, mudou seu rumo para um orelhão solitário perto das lixeiras. Não hesitou por meio segundo. Segurou o fone e com a mesma mão – a outra permaneceu no bolso – discou os números (ou assim parecia proceder). Foi o tempo de apertar as oito teclas e meu telefone tocou. Uma pedra de gelo subiu-me pela espinha, lambuzou-me o pescoço, caiu faceiro e se alojou em meu estômago. Atendi de primeira e ouvi a voz do outro lado dizer Vá dormir. Pensei que não seria prudente desobedecer a uma ordem tão peremptória dada àquela hora da noite. Voltei à cama e de lá só saí com o sol na janela, me acordando despiedosamente.

domingo, 12 de julho de 2009

O homem que sorri e que gargalha

Com enormes poucos dentes brancos de branqueamento químico, sorri este homem podre de vontades distorcidas. Que quererá ele, em pé, soberbo, no meio da praça, na mira dos olhos dos passantes que se esforçam por serem indiferentes. Tem nas mãos algo intrigante que brilha de reflexo, puro medo do sol que cai lá em cima. Ele olha, e sorri, e gargalha a gargalhada dos desesperados, das pobres almas incapazes de controlar o pensamento. As calças mijadas de pavor, os pés encardidos de miséria, é estátua de semblante esvaziado. Continua sorrindo e gargalhando o infeliz das roupas cinzas da fumaça, da areia, do pó que os outros tiram no chuveiro quando chegam em casa. Que têm nos pulmões as pessoas de bem que olham sem respeito e cospem pensamentos de desprezo? Que tem no intestino o grosso sujeito digno, de virtude, resoluto na moral mais putrefata? E ele olha, e sorri, e gargalha, e aponta o céu com todos os dentes que lhe faltam na boca, cheiro de merda. Enquanto os outros passam, indo sem sentido pra lugar algum. Até que tudo passa, e a noite madruga sem transtorno. E os cachorros refugiam-se sem lamento aos pés do pobre homem de olhos amarelados que morreu e continua ali, em pé. E a noite passa, e o dia chega e todos chegam e no passo apertado passam pelos mesmos caminhos. Não olham o defunto que olha, e sorri, e gargalha com poucos dentes e barba horrível de banho nunca dado. E é assim que tudo vai, vão-se todos cruzando vias e abaixando os olhos quando passam por ele, sujeito da existência lastimável, que sorri e que gargalha.

sábado, 16 de maio de 2009

A morte (é) premeditada

Naquele bar de velhos velhos penados, as almas eram pesadas. Só mais um sujo boteco numa rua imunda de uma cidade esquecida de um triste país num terceiro mundo qualquer. Nem as putas frequentam o lugar, não porque os velhos dali são velhos, pois velhos também anseiam gozar, mas porque são velhos de almas miseráveis e bolsos piores. Se uma por ali aparecia, era pra beber barato a própria miséria de ser uma puta velha sem valor no mercado dos prazeres carnais, tão dominado pela tristeza juvenil e até infantil dos peitinhos incipientes mas carnudos dos dezesseis anos. Ali ninguém a tocava, e se trepava era por misericórdia e era de graça.

Nesse bar se encontravam desgraçados, não pra lamentar qualquer coisa, se suas vidas eram horríveis, delas não se poderia fazer filmes ou livros. Não viveram grandes amores, dramas ou tragédias. Apenas viveram, meio a contragosto, sempre sem paixão. Encontraram na cachaça o asilo para a perseguição da vida compulsória. Não era a descrença nem um saber elevado nem as decepções que os levavam ali. Era uma miséria que sentiam e que não poderiam expressar porque não a conheciam. Estavam vivos e viver era melhor com álcool. Assim esqueciam que existiam.

Pouco conversavam, não havia muito a ser dito. E quando diziam, não iam longe. Discutiam mesquinharias da vida ordinária, que cidade fica mais perto de que cidade, o nome de uma rua, o ator daquela novela de 79. Ficavam nisso. Não havia televisão, não comiam. A mesa de sinuca era pra adolescentes que vinham e iam e nada mudavam. Não lamentavam nada. Não brigavam. Nada disso faria sentido pois não eram tristes - tristes eram suas vidas. Estavam lá porque eram obrigados a existir e o suicídio era algo em que nunca haviam pensado. Aliás, não havia porque fazer isso se no fim iriam morrer de qualquer forma.

Um dia o bar não abriu. Na porta, um bilhete. O chapinha, um dos ébrios, havia morrido. Alguma coisa no coração que os médicos não se preocuparam em descobrir o que era. Afinal, já estava morto. E se ainda vivo era um corpo sem quem o reclamasse, que seria morto? Seu funeral estava vazio. Os bêbados não foram. Acharam outro lugar onde beber. O dono do bar, que não era bêbado mas tinha a alma embriagada, aproveitou o pretexto e ficou em casa de cueca vendo televisão. Foi enterrado no túmulo da família. Não acharam uma foto pra colocar ao lado da de seus pais. Ficou pra depois. No dia seguinte, o bar abriu. Os bêbados ficaram felizes, puderam voltar. Falaram sobre o chapinha, lamentaram, ninguém chorou.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Da epidemia e do sangue quente


Que surpresa boa saber que tanta gente leu e gostou do último post. Levo todos com muita estima. Como eu disse a uma pessoa que comentou ter lido o texto sobre o domingo, acho que se eu sobreviver à minha própria vida, lá no finzinho, no crepúsculo da existência, quando a luz da consciência se transformar num lusco-fusco efêmero, triste e lindo, vou me desfazer em memórias. Pois se aos vinte e quatro já as tenho com tanto apreço, que dirá aos oitenta (e que os deuses me permitam tal graça!). Entretanto fiquei um pouco preocupado.

É quente o sangue que oxigena este cérebro e estas mãos que lhes escrevem. Carrego ainda o ímpeto da juventude - que alguns carregam para sempre. Minha urgência de escrever nem sempre é de contemplação. Às vezes, preciso mesmo transcrever um sentimento colérico. Mas claro, nada é a toa. Acredito muito que uma certa raiva, uma revolta, são sentimentos de quem ama. É um estilo de amor, certo, tipico daqueles que, como eu, têm no coração um pulsar quente e violento. Amor que não é melhor nem pior que outros amores, é apenas o único jeito de amar a estes possível. Talvez um pouco trágico, encampo cruzadas contra os problemas mais insignificantes - talvez os elevo, assim, quase à categoria de males da humanidade. Mas isso é tão somente porque eu amo, e não falo só de mim, mas a partir de mim, dos milhões como eu. Discuto bem mais do que eu gostaria com a minha companheira, mas isso é apenas porque a amo absurdamente. E ela sabe que se um dia eu me calar, será o fatídico sinal de que meu amor virou brasa, ou pior, fez-se já em cinzas.

Mas por que este confessional e confuso prólogo? Com sinceridade, não há um porque. Apenas lembrei disso pois na segunda metade da semana passada nós todos começamos a ser bombardeados pela televisão com notícias sobre uma tal gripe suína. Logo no primeiro dia já pensei, pronto, após ter morrido de aids, ebola, gripe aviária, bactéria legal, protozoário assassino, terei a honra de morrer de gripe suína. Com a dignidade, aliás, de quem uma vez desencarnado, percorrerá os mundos em seu galante traje de espírito de porco. É brincadeira... Nossa sociedade tem um imenso sentimento de culpa por existir. Desde os mais remotos tempos olhamos para o céu nos perguntando quando a brincadeiria iria acabar, quando Ele, o dono da bola, viria tomá-la de volta. Inventamos fins do mundo que, ao não se realizarem, se renovam na expectativa de novos fins do mundo. Viver é bom demais para ser verdade e seremos castigados. A mídia sabe disso. E sabe mais, que além dessa paranóia apocaliptica, temos historicamente fatos preocupantes, como a peste negra que dizimou 1/3 da população européia ou a gripe espanhola que vitimou 60 milhões de pessoas. Isso torna o medo a mercadoria mais vendida no mundo. Para além da já conhecida "teologia do cagaço" que manteve a igreja católica medieval em pé, a indústria do medo vende muitos remédios e muito, muito jornal. E foi isso que fizeram. O curto verão da gripe suína, aka H1N1, aka influenza a, durou uma semana. Hoje já suspeitam o que sempre souberam, que a terrível, letal, mortal, cruel, devastadora, genocida e apocalíptica gripe não passa de uma... gripe. Uma gripe mais forte, é verdade, mas uma gripe. E com que sarro vi matérias e matérias nos jornais sobre como 'identificar sintomas da gripe suína'. Dor de cabeça, febre, dor nos músculos, articulações... Será possível que acompanhando o homem desde seu surgimento ainda não sabemos identificar os sintomas de uma gripe?! Dir-se-á que, ora, uma gripe foi a gripe espanhola e fez o estrago que fez. Pois bem, em 1918 morria-se de apendicite (e as cirurgias eram feitas sem anestesia, com éter!). Além do mais, algo que em incomoda muito é o fato de saber que morre-se muito ainda hoje de doenças completamente sem graça. Não vendem mais jornal. São as feias e bobas cólera, malária, febre amarela... e a fome. Ah, se a inanição fosse contagiosa... Enfim, agora já começo a chover no molhado. As notícias são cada vez menores e mais raras. A maior vítima disso tudo até agora foi a liberdade. Pois muito obedientemente fechou-se um hotel, um país, uma planeta. Nos mais remotos lugares, pessoas pacificamente aceitaram o medo e medidas cautelares. O abraço foi proibido. Daqui a amanhã, numa nova devastadora epidemia de uma semana, talvez proibam o sorriso. Por fim, um dia chegará em que provarão os malefícios clínicos de se pensar.

terça-feira, 10 de julho de 2007

A morte de Carlos


Morava em minha casa uma pessoa que muito eu estimava. Estava sempre disposto a ajudar, solícito mesmo. Nunca o vi de mau-humor. Ainda quando acordado às 08 da manhã num domingo, demonstrava uma simpatia que fazia com que dirigir qualquer tipo de ofensa ou mesmo palavra mais rígida a ele se tornasse algo digno de vergonha. Realmente um grande ser humano. Era o tipo de pessoa com quem se pode contar. A bem da verdade, meu primo Carlos era daqueles que se destacam nos momentos difíceis. Aquela pessoa que puxa para si a responsabilidade de tocar o barco, custe o que custar. Jamais poderei esquecer os momentos em que, prestes a perder as esperanças, tive em Carlos uma mão amiga. Mais que isso. Como fiel companheiro, em inúmeras vezes ele me emprestou também seus ouvidos e quando percebia que o silêncio seria melhor pra mim, permitia que eu me calasse e falava em meu nome.

Tudo isso contrastava, no entanto, com o comportamento de Carlos nos momentos menos difíceis. Se outrora ele parecia ser o centro das atenções, como uma daquelas grandes e gordas mães italianas que povoam nossa imaginação, não deixando jamais “a peteca cair”, como gostava de dizer, quando a tempestade se dissipava, Carlos parecia também se dissipar. Durante algum tempo ainda permanecia em destaque, como que pra conferir se a melhora era permanente ou se era aquela aparente melhora que doentes terminais normalmente têm na véspera da morte (para que possam se despedir, dizem alguns). Confirmada a estabilidade, meu primo começava um processo não muito demorado de diluição de seu papel no cotidiano harmonizado. Tal como um ditador romano eleito pelos cônsules para dar cabo a um conflito, findo o problema, dissolvia-se sua autoridade.

Carlos, nos tempos mais recentes, andava muito ausente. Nos raros momentos em que aparecia, havia algo em seu olhar além da habitual oferta de conforto. Ele parecia saber alguma coisa, algo não muito bom sobre o seu futuro. Hesitava em falar. Seria a maior desonra trazer o menor desassossego, a menor sombra sobre o sol de verão das vacas gordas. Numa das últimas vezes que o vi, deixou escapar que já não fazia planos, que talvez fosse melhor começar denovo. A partir daí não tive dúvidas. Carlos estava se despedindo. Jamais me falaria isso, obviamente. Sabia que eu pediria para que ficasse e que não ousaria recusar tal pedido (como sempre, antecipava-se ao pedido, oferecendo-se voluntariamente).

Apesar de meu grande apreço, aceitei sua decisão. Ele precisava ser útil, senão ali, em qualquer outro lugar. Carlos sempre foi muito espiritualizado. Mantinha, na verdade, um acosmicismo, um amor universal e uma crença na completude. Cria que havia um lugar para tudo e para todos. Convicto de que seu lugar não era mais em minha companhia, partiu. Deixou comigo apenas uma sincera gratidão e o ensinamento de que só existe um problema: o desajuste. Carlos não tinha posses.