quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Dona Janira
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Um sonho
terça-feira, 18 de maio de 2010
De quando me descobri morto - Ato único
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
A Carta
Passei muito tempo da minha pouca vida fazendo muitas coisas que se revelaram poucas. Tudo que ganhei foi um sentimento de vastidão desabitada.
À sua frente, eu o devorava. Seus olhos amarelos, a pele gasta, aquelas palavras que pareciam falsas de tão sinceras. Nada nele me parecia fortuito. Por isso, silenciava.
Agora, no crepúsculo da minha existência, quando é ridícula a própria idéia de mudar o destino, sinto-me como alguém que acordou tendo uma só tarefa para o dia mas que, ao levantar as pernas cansadas e deitar a cabeça ao travesseiro à noite, dá-se conta de que só não fez aquilo que devia, aquilo que queria.
Acabaram os miolos, eram já todos bolinhas. O velho pareceu dar-se conta de que, se não emendasse logo um desfecho, seu desabafo pareceria esconder algum ensinamento moral e ensinamentos morais, àquela hora da vida, era tudo o que mais queria que não existissem. Apontou agora seus olhos para os meus, que quiseram fugir das órbitas com a violência do olhar.
E você, filho da puta, um dia vai perceber a mesma coisa. Reconheço um cagado no mundo no escuro. Somos uma irmandade. Espero que não demore pra descobrir que se existe um sentido nisso tudo, ele deve estar amortecido pelo álcool e outros vícios.
Continuei ali, vendo o desespero e a solidão do velho. Ele continuou falando. Passou a vida lutando contra o silêncio e agora sofria por ter descoberto que perderia. Ali aprendi a calar-me. Lá se foram cinquenta anos de serena sobriedade. Hoje, no crepúsculo da minha existência, sufoca-me este sentimento de superpovoamento, de carregar no peito, o mundo. Não quero levar para o túmulo o peso das possibilidades. Por isso escrevo esta carta para ninguém, pois ninguém merece lê-la.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
Toque de recolher
O telefone tocou histérico na madrugada. Acordei sobressaltado, já pensando nos velhos da família. Descalço, mesmo, nem senti a cerâmica fria, ziguezagueei meio trêbado de sono e quando enfim achei o desesperado aparelho, o abusado parou de tocar. Diabo de ligação. Trezentos batimentos por minuto, tremo como um hamster acagalhado. Já sentia a mesma palpitação que vez ou outra me ocupa há quinze anos, desde uma outra noite violada pelo gritar de um outro telefone. Lembro-me bem: ao toque, seguiu-se um choro contido, passos pela casa, luzes que iam acendendo progressivamente, as vozes cada vez menos constrangidas em romper o silêncio. Primeiro mamãe – que atendeu a ligação – depois vovô, meu irmão mais velho e uma prima que na época morava em casa. Tia Zica tinha morrido. Aparentemente aquilo ainda não era assunto pra mim, moleque de doze anos, mas encarcerado em minha alcova mofada, pude sentir o cheiro de talco da velha encrenqueira que nos visitava aos domingos. Depois disso ninguém mais na família morreu à noite, ainda que alguns tenham definhado miseravelmente - dando ao infortúnio de suas mortes a forma de uma corriqueira presença. Eram parentes pra voltar de viagem e, quando chegassem, em vez de abalarem, trariam de volta a ordem perdida e, consequentemente, algum acalento.
Esperei em frente ao telefone por mais alguns minutos. Vai que toca de novo e será o trabalho de ir e voltar. Não tocou. Fui até a janela e quando me dei conta estava com um cigarro na boca. Olhava as ruas, como ficam bonitas assim, reluzindo o amarelo que vem dos postes, os semáforos piscando a toa. São realmente bonitas as ruas vazias e silenciosas, livres da vulgaridade que as mesquinharias da vida ordinária lhes conferem. Fumei mais um pouco até sentir frio. Fechei a janela e a cortina mas, antes de sair, espiei furtivamente abrindo com um dedo a cortina pra ver se aquela pintura não era uma farsa, se ao dar as costas alguma coisa se moveria. Não, tudo continuava igual.
Deitei na cama que já estava fria. Foi o tempo de cobrir e me virar, o telefone voltou a tocar. Não pensei mais nos velhos, mas como se repetisse a cena, o aparelho emudeceu com a minha presença. Caminhei até a cozinha, abri a geladeira, fechei, olhei para a mesa, abri novamente a geladeira, tornei a fechá-la. No deserto da minha cozinha, a única coisa que se sobressaía era a garrafa térmica, altiva, sobre o deprimente lascado balcão de laminado azul. Um gole de café no meio da madrugada é de foder, mas não resisti. Ainda estava quente e, num copinho americano, o café preto é também uma agradável experiência estética e sinestésica. Voltei à janela, agora com a bebida na mão. Primeiro, a olhada escondida, depois abrindo-a sem vergonha. Mais um cigarro apareceu em minha boca, mas dessa vez, bem, o café estava lá, fazia sentido. O silêncio era mineral e as luzes continuavam amarelas. Nem um maldito cachorro aparecia, nem uma lâmpada se apagava.
Estava novamente voltando pra cama, abri mais uma vez a frestinha na cortina, nada, fechei. Nada? Não tinha certeza, na verdade não tinha prestado atenção. Mais uma espiada e, ah!, lá estava um sujeito caminhando pela rua. Vinha tranquilo, passos simétricos, mãos nos bolsos. Descia a Faria Lemos sem olhar pros lados. Era como se fosse às três da tarde, tinha a objetividade de quem vai à padaria pedir pão bem branquinho. Chegando à praça 12 de Julho, mudou seu rumo para um orelhão solitário perto das lixeiras. Não hesitou por meio segundo. Segurou o fone e com a mesma mão – a outra permaneceu no bolso – discou os números (ou assim parecia proceder). Foi o tempo de apertar as oito teclas e meu telefone tocou. Uma pedra de gelo subiu-me pela espinha, lambuzou-me o pescoço, caiu faceiro e se alojou em meu estômago. Atendi de primeira e ouvi a voz do outro lado dizer Vá dormir. Pensei que não seria prudente desobedecer a uma ordem tão peremptória dada àquela hora da noite. Voltei à cama e de lá só saí com o sol na janela, me acordando despiedosamente.
domingo, 12 de julho de 2009
O homem que sorri e que gargalha
sábado, 16 de maio de 2009
A morte (é) premeditada
Nesse bar se encontravam desgraçados, não pra lamentar qualquer coisa, se suas vidas eram horríveis, delas não se poderia fazer filmes ou livros. Não viveram grandes amores, dramas ou tragédias. Apenas viveram, meio a contragosto, sempre sem paixão. Encontraram na cachaça o asilo para a perseguição da vida compulsória. Não era a descrença nem um saber elevado nem as decepções que os levavam ali. Era uma miséria que sentiam e que não poderiam expressar porque não a conheciam. Estavam vivos e viver era melhor com álcool. Assim esqueciam que existiam.
Pouco conversavam, não havia muito a ser dito. E quando diziam, não iam longe. Discutiam mesquinharias da vida ordinária, que cidade fica mais perto de que cidade, o nome de uma rua, o ator daquela novela de 79. Ficavam nisso. Não havia televisão, não comiam. A mesa de sinuca era pra adolescentes que vinham e iam e nada mudavam. Não lamentavam nada. Não brigavam. Nada disso faria sentido pois não eram tristes - tristes eram suas vidas. Estavam lá porque eram obrigados a existir e o suicídio era algo em que nunca haviam pensado. Aliás, não havia porque fazer isso se no fim iriam morrer de qualquer forma.
Um dia o bar não abriu. Na porta, um bilhete. O chapinha, um dos ébrios, havia morrido. Alguma coisa no coração que os médicos não se preocuparam em descobrir o que era. Afinal, já estava morto. E se ainda vivo era um corpo sem quem o reclamasse, que seria morto? Seu funeral estava vazio. Os bêbados não foram. Acharam outro lugar onde beber. O dono do bar, que não era bêbado mas tinha a alma embriagada, aproveitou o pretexto e ficou em casa de cueca vendo televisão. Foi enterrado no túmulo da família. Não acharam uma foto pra colocar ao lado da de seus pais. Ficou pra depois. No dia seguinte, o bar abriu. Os bêbados ficaram felizes, puderam voltar. Falaram sobre o chapinha, lamentaram, ninguém chorou.
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Da epidemia e do sangue quente
Que surpresa boa saber que tanta gente leu e gostou do último post. Levo todos com muita estima. Como eu disse a uma pessoa que comentou ter lido o texto sobre o domingo, acho que se eu sobreviver à minha própria vida, lá no finzinho, no crepúsculo da existência, quando a luz da consciência se transformar num lusco-fusco efêmero, triste e lindo, vou me desfazer em memórias. Pois se aos vinte e quatro já as tenho com tanto apreço, que dirá aos oitenta (e que os deuses me permitam tal graça!). Entretanto fiquei um pouco preocupado.
É quente o sangue que oxigena este cérebro e estas mãos que lhes escrevem. Carrego ainda o ímpeto da juventude - que alguns carregam para sempre. Minha urgência de escrever nem sempre é de contemplação. Às vezes, preciso mesmo transcrever um sentimento colérico. Mas claro, nada é a toa. Acredito muito que uma certa raiva, uma revolta, são sentimentos de quem ama. É um estilo de amor, certo, tipico daqueles que, como eu, têm no coração um pulsar quente e violento. Amor que não é melhor nem pior que outros amores, é apenas o único jeito de amar a estes possível. Talvez um pouco trágico, encampo cruzadas contra os problemas mais insignificantes - talvez os elevo, assim, quase à categoria de males da humanidade. Mas isso é tão somente porque eu amo, e não falo só de mim, mas a partir de mim, dos milhões como eu. Discuto bem mais do que eu gostaria com a minha companheira, mas isso é apenas porque a amo absurdamente. E ela sabe que se um dia eu me calar, será o fatídico sinal de que meu amor virou brasa, ou pior, fez-se já em cinzas.
Mas por que este confessional e confuso prólogo? Com sinceridade, não há um porque. Apenas lembrei disso pois na segunda metade da semana passada nós todos começamos a ser bombardeados pela televisão com notícias sobre uma tal gripe suína. Logo no primeiro dia já pensei, pronto, após ter morrido de aids, ebola, gripe aviária, bactéria legal, protozoário assassino, terei a honra de morrer de gripe suína. Com a dignidade, aliás, de quem uma vez desencarnado, percorrerá os mundos em seu galante traje de espírito de porco. É brincadeira... Nossa sociedade tem um imenso sentimento de culpa por existir. Desde os mais remotos tempos olhamos para o céu nos perguntando quando a brincadeiria iria acabar, quando Ele, o dono da bola, viria tomá-la de volta. Inventamos fins do mundo que, ao não se realizarem, se renovam na expectativa de novos fins do mundo. Viver é bom demais para ser verdade e seremos castigados. A mídia sabe disso. E sabe mais, que além dessa paranóia apocaliptica, temos historicamente fatos preocupantes, como a peste negra que dizimou 1/3 da população européia ou a gripe espanhola que vitimou 60 milhões de pessoas. Isso torna o medo a mercadoria mais vendida no mundo. Para além da já conhecida "teologia do cagaço" que manteve a igreja católica medieval em pé, a indústria do medo vende muitos remédios e muito, muito jornal. E foi isso que fizeram. O curto verão da gripe suína, aka H1N1, aka influenza a, durou uma semana. Hoje já suspeitam o que sempre souberam, que a terrível, letal, mortal, cruel, devastadora, genocida e apocalíptica gripe não passa de uma... gripe. Uma gripe mais forte, é verdade, mas uma gripe. E com que sarro vi matérias e matérias nos jornais sobre como 'identificar sintomas da gripe suína'. Dor de cabeça, febre, dor nos músculos, articulações... Será possível que acompanhando o homem desde seu surgimento ainda não sabemos identificar os sintomas de uma gripe?! Dir-se-á que, ora, uma gripe foi a gripe espanhola e fez o estrago que fez. Pois bem, em 1918 morria-se de apendicite (e as cirurgias eram feitas sem anestesia, com éter!). Além do mais, algo que em incomoda muito é o fato de saber que morre-se muito ainda hoje de doenças completamente sem graça. Não vendem mais jornal. São as feias e bobas cólera, malária, febre amarela... e a fome. Ah, se a inanição fosse contagiosa... Enfim, agora já começo a chover no molhado. As notícias são cada vez menores e mais raras. A maior vítima disso tudo até agora foi a liberdade. Pois muito obedientemente fechou-se um hotel, um país, uma planeta. Nos mais remotos lugares, pessoas pacificamente aceitaram o medo e medidas cautelares. O abraço foi proibido. Daqui a amanhã, numa nova devastadora epidemia de uma semana, talvez proibam o sorriso. Por fim, um dia chegará em que provarão os malefícios clínicos de se pensar.