sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A Carta

Enquanto enrolava os miolos de pão que sobravam pela mesa, o velho atirava seu olhar para um canto qualquer, a fim de perdê-lo, e dizia, com a voz serena que durou uma vida para conseguir alcançar:

Passei muito tempo da minha pouca vida fazendo muitas coisas que se revelaram poucas. Tudo que ganhei foi um sentimento de vastidão desabitada.

À sua frente, eu o devorava. Seus olhos amarelos, a pele gasta, aquelas palavras que pareciam falsas de tão sinceras. Nada nele me parecia fortuito. Por isso, silenciava.

Agora, no crepúsculo da minha existência, quando é ridícula a própria idéia de mudar o destino, sinto-me como alguém que acordou tendo uma só tarefa para o dia mas que, ao levantar as pernas cansadas e deitar a cabeça ao travesseiro à noite, dá-se conta de que só não fez aquilo que devia, aquilo que queria.

Acabaram os miolos, eram já todos bolinhas. O velho pareceu dar-se conta de que, se não emendasse logo um desfecho, seu desabafo pareceria esconder algum ensinamento moral e ensinamentos morais, àquela hora da vida, era tudo o que mais queria que não existissem. Apontou agora seus olhos para os meus, que quiseram fugir das órbitas com a violência do olhar.

E você, filho da puta, um dia vai perceber a mesma coisa. Reconheço um cagado no mundo no escuro. Somos uma irmandade. Espero que não demore pra descobrir que se existe um sentido nisso tudo, ele deve estar amortecido pelo álcool e outros vícios.

Continuei ali, vendo o desespero e a solidão do velho. Ele continuou falando. Passou a vida lutando contra o silêncio e agora sofria por ter descoberto que perderia. Ali aprendi a calar-me. Lá se foram cinquenta anos de serena sobriedade. Hoje, no crepúsculo da minha existência, sufoca-me este sentimento de superpovoamento, de carregar no peito, o mundo. Não quero levar para o túmulo o peso das possibilidades. Por isso escrevo esta carta para ninguém, pois ninguém merece lê-la.

2 comentários:

  1. Interessante. Ei vc poderia deixar mais uns comentários no meu blog. Tenho vários textos novos. Se cadastre no meu blog como seguidor.

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  2. que tal fundar uma religião... pensando bem, um time de futebol de botão... sempre me divirto muito com essas coisas e não estou falando de futebol de botão...
    grande abraço!!!

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