segunda-feira, 25 de setembro de 2006

A noite


Ouvi um barulho no meio da noite e acordei. Estava tudo escuro, não conseguia enxergar nada. Levantei da cama tomando cuidado para não tropeçar nem pisar em cima de nenhuma das coisas que, pelo chão, atravancam o caminho entre a cama e o interruptor. Tateando a parede segui até o local onde fica este botãozinho - que junto com a televisão, o carro e as filas, consitui o grande legado da nossa sociedade ao gênero humano. Encontrei. Com a palma da mão aberta, golpeei levemente e ouvi o clác habitual. Nada aconteceu. Essas coisas são fosforecentes, ou fluorecentes, mas de nada adianta, pois brilham por menos de um minuto, ou seja, quando sua memória ainda é capaz de dizer onde elas estão (aliás, fósforo e fluor, que moram na tabela periódica dos elementos, também fazem parte do noso patrimônio intelectual, o primeiro acende cigarros e o segundo as crianças pobres são obrigadas a gargarejar nas escolas públicas - o gosto é horrível). Mesmo tendo um polegar opositor capaz de fazer movimento de pinça, fiz minha segunda tentativa usando o indicador, como um orangotango seria capaz de fazer (já é melhor que a patinha inteira, feito um gato, como na primeira). Novamente nada aconteceu. Embora o clác fosse audível, a luz não acendia. Algo estava errado, afinal de contas, o indicador tem o poder de atribuir veracidade ao mundo material (com que dedo você mexeu, bem de levezinho, no seu primeiro cocô de cavalo ? (seu não, no primeiro que você viu)). A lâmpada deve ter queimado durante a noite, pensei (teve a morte mais desejada da nossa sociedade, morreu dormindo, aliás, que vergonha. Enquanto em outras sociedade as pessoas desejam morrer lutando, sendo sacrificadas no solstício de verão, ou trabalhando, nós queremos morrer dormindo, medíocre e individual como tudo em nossa vida.). Agora eu tinha duas opções, ou voltava num pulo para a cama ou procurava outro interruptor. Merda, preferia nem ter levantado. Pisando em ovos (óculos, chaves, livros, naftalinas e bolachas) caminhei até o corredor onde tem uma lâmpada que deveria funcionar. Deveria, mas não funcionou, pois a embora o indicador rijo e o clác, clác habitual, nada de luz (essa lâmpada está sob um lustre de vidro branco, daqueles que vira cemitério de mosquito, tão feio que mesmo no breu total eu era capaz de vê-lo lá em cima, ostensivo, digno como uma testemunha da história). Legal, agora eu poderia continuar caminhando até a sala (e no caminho, tropeçar e bater com o mindinho direito na estante da sala, como tem acontecido nos últimos treze anos) ou voltar para a cama (não é todo dia que temos uma segunda chance). Resolvi voltar a dormir, muito embora o sono já estivesse longe. Fazendo o caminho de volta, tentando pisar mais ou menos nos mesmos lugares cheguei até o quarto. Dane-se o barulho. Novamente tateando a parede, a partir da porta a cama deveria estar a dois passos medrosos (aquele curtinho que damos no escuro). Um dois e... nada. Tá bom, três. Nada. Cadê a cama que estava aqui ? (morar sozinho me deixou esquizofrênico, habituei-me a fazer perguntas retóricas, querendo fazer piada pra mim mesmo). Dei mais um passo, agora largo, na esperança de que minha canela encontrasse a cama antes que eu (afinal, junto com os dedos dos pés, as canelas estão para os humanos no escuro como os focinhos estão para os cães). Nada de cama. Novamente algo errado. Como não moro no palácio de Versalhes, meu quarto é diminuto. Eu já deveria ter me espatifado contra a parede, mesmo sem cama. Continuei caminhando, seguindo a parede. Quatro, cinco, seis, sete passos e... chão! (aliás, quantas vezes você já escreveu a palavra chão? Eu, pouquíssimas. Acho que já escrevi mais "não obstante" do que chão, não obstante costume falar muito mais (e pisar mais) chão do que "não obstante".) Tirei a mão da parede e comecei a andar, já sem medo de tropeçar ou pisar em algo. Dava passos largos, acelerei meu andar. A situação já tinha rompido todas as fronteiras do compreensível. Eu, dentro do meu quarto, tinha caminhado lejos e não chegava a lugar algum. A escuridão ainda era absoluta. Então comecei a correr, correr, correr, correr. Agora eu era um cão. Corria por um vasto gramado atrás das aves que pousavam para procurar por minhocas. Um céu lindo me cobria, com um azul intenso contrastado pela alvura de delicadas nuvens. Sempre que eu me aproximava os pássaros levantavam voô com toda a elegância e me faziam sentir um desesperado, caindo com o focinho no chão (parecia ser primavera, pois a grama, daquelas com folhas grandes e grossas, estava molhada. Por baixo dela, o chão (novamente ele) de terra bem escura, na verdade preta, estava também úmido). Há algum tempo eu passei a admirar a elegância das aves. É fantástico o modo como alternam entre seres terrestres, seja caminhando e rebolando como os albatrozes, seja com o passinho-de-modelo dos quero-queros, para seres voadores, fazendo inveja aos que estão presos ao chão (sim!). Mas isso foi antes de eu ser um cão. Agora das aves eu só queria a coxa e sobre-coxa e, quem sabe, a coxinha da asa. Corria de lá pra cá, tentando abocanhar alguma ave desatenta (a propósito, eu era um labrador, como o Ted). Foi quando eu vi uma andorinha. Ela estava solitária, com um andar melancólico de quem não tem destino. Olhava com muito desprezo as outras aves desesperadas em busca de um repasto. Embora uma andorinha (enfim, poderia engolí-la sem mastigar), eu estava disposto a fazê-la minha. Ela estava a uns 200 metros de distância (claro, eu era um cachorro). Alinhei-me, agachei, contraí meus musculos, enchi os pulmões de ar e parti. Corri mais do que nunca, na trajetória, dois pardais cruzaram a minha frente a uma distância que poderia alcançar com um torcer do pescoço. Mas naquele momento meu destino era a andorinha. Nenhuma outra coisa me saciaria senão aquela doce ave. 100 metros e ela continuava lá, distraída como quem espera a vida passar (andorinhas não tem leis contra a vadiagem, bares ou televisões). A 50 metros eu já sentia sua carne presa entre meus molares. Corria, corria, corria. Agora eu era a andorinha. Fazia reflexões sobre a miséria existencial, sobre o ser-em-si, o eterno vir-a-ser e essas coisas que pensa toda andorinha. Olhei no chão e senti asco ao ver metade de uma minhoca, provavelmente parcialmente devorada por uma de minhas congêneres (desde que me tornei vegan jamais consegui olhar tranquilamente a comida animal. Agora eu viva a me alimentar de soja deixada para trás pelos caminhões, especialmente o farelo, conseguindo assim todo o apport protéico necessário.). Ouvi passos apressados e vi um cão, babando, com um olhar obstinado vindo em minha direção. Com certeza era um infeliz carnivoro, que, não fosse por isso poderia estar vindo me cumprimentar ou mesmo me convidar para um saral de poesias. Mas ele vinha me comer. Lamentei ter de abandonar aquele pedacinho de grama tão quentinho (raro naqueles dias frios, e só possível por ser um pedaço de terra mais seca). Placidamente, fiquei nas pontas dos pés, abri as asas e levantei voô. Tive tempo de olhar para baixo e ver o estranho cão (que até parecia simpático) esborrachar-se contra o chão. Voei sem rumo por algum tempo. Estava me sentindo leve naquele dia e precisava de algo que desse significado a minha vida. Me sentida capaz de coisas grandes. Nada aparecia e eu me sentia angustiado (isso, logicamente, acabava com a leveza do dia). Decidi fazer a única coisa que, embora fizesse diariamente, me dava prazer: contemplar (ser um pássaro é o sonho de todo voyeur, e eu era um pássaro voyeur!). Voei, voei, voei e me encostei sobre um muro que dava vista para o interior de um quarto. Lá dentro, vi um jovem deitado em sua cama, dormindo o que deveria ser sua ultima hora de sono do dia. Ele tinha uma ótima expressão. Era leve como eu me sentia, mas não tinha qualquer sinal de angústia subjacente. Era pleno. Ao seu lado, no chão, vários objetos, alguns caídos, outros apenas largados. Reconheci um desses objetos: um relógio. De repente, senti algo estranho. Não conseguia tirar os olhos daquele objeto, cujos ponteiros, indefectíveis, faziam sua marcha regular cujo destino é a própria marcha. Alguma coisa iria acontecer. Sentia-me mal, desconfortável. A situação beirava o insuportável, algo iria acontecer, algo precisava acontecer. O universo estava parindo. Então o despertador tocou. Eu acordo, abro os olhos, vejo um passarinho que estava parado sair voando. A partir dali seriam 30 minutos para me humanizar, 30 minutos me deslocando sem me mexer, 4 horas para oscilar entre satisfação e desesperança, 2 horas para comer e esperar, 30 minutos para andar, 4 horas para me desmoralizar, novamente 30 minutos para andar, mais 20 para esperar, 30 minutos devolta me deslocando sem me mexer (agora em pé, talvez), 40 minutos para preparar comida e comer, 20 minutos para emails e coisas inúteis. O resto do dia para fazer o outro resto do dia ter algum significado.
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8 comentários:

  1. QUERO MEU BRINDE! QUERO MEU BRINDE!! MEEEEEUUUUUUU BRINNNNNNNNDDDDDDDDDDDDEEEEE!!!

    hahahahahaha

    Gostei desse! Sei que não tenho muita moral para julgar textos alheios, mas gostei da forma como conduziu! Gostei mesmo! =)

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  2. AH! Por acaso essa coisa do brinde, não é igual ao brinde do livreiro lá da Federal né?
    Se você não sabe do que estou falando, sugiro que vá direto a fonte! hahaha

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  3. Que fique bem claro, estou me manifestando aqui somente com interesse de reivindicar o meu BRINDE! hahahhahaa

    mitas coisas pra dizer, vou postar nos respectivos posts, ok? abraços

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  4. Tim tim!!
    Brindemos..

    Eu li até o ponto final!
    E fazia tempo que não lia algo tão bom!!

    Grande Elton..

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  5. Pamela, não estraga a brincadeira! Aliás, o anônimo (mamãe?) deu a pista. Será algum já iniciado nos mistérios da reitoria?
    Carlinhos, seu brinde será entregue na sexta feira, no bar. Peça para o Ricardo, do coração, entregar pra você.

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  6. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  7. UAU!

    E ele termina com "Grande Elton". Deve te conhecer de longa data! hahaha

    SE descobrir quem é, conte-me!

    [esse post que foi removido, era meu...quis corrigir a má ortografia! hahaha]

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  8. não considero recaida =)
    mas é que tenho amigos limitados, que não sabem usar email para avisar de eventos, e só em pensarem em chegar perto do telefone tem convulsões...hahaha
    mas pode ficar tranquilo, a temporada fora dele, fez com que eu soube-se usar a força, não voltarei para o lado negro...hahaha..Gente! Como eu *amo* Stars Wars! hahahah

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