terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - Partida

Começo agora minha primeira investida de mais fôlego nessa brincadeira com as palavras. Confundindo imaginação e memórias, pretendo reescrever as existências anônimas que me roderaram - eu, um outro anônimo - nos meus primeiros vinte anos nesse mundo. Trajetórias banais, problemas mesquinhos, desses que não dão romance. Morei a maior parte desse tempo em condomínios de classe média/baixa e nesses locais a própria vida de muita gente é comunitária, seus dramas são exposições permanentes que a audiência não hesita em visitar, comentar e discutir para, por fim, refutar, desprezar e detestar. São, portanto, obras de arte. Com isso não quero dizer que essa maneira de viver é ruim ou pior que a vida hermética das casas apartadas por jardins murados. Talvez seja, talvez seja melhor, não sei. Sei que é como é, e como é é a maneira como a vivem. Os textos sairão em forma de fragmentos, que é o jeito que tenho de contar as coisas. Postarei com mais frequência que de costume, por isso fiquem atentos. O fio condutor será a saga de um velho e o amor que por ele nutre a solidão. Por fim, aviso: Os personagens são todos fictícios embora não sejam nem um pouco irreais. Desejem-me boa sorte que vos desejo boa leitura.

* * *

Aos domingos, aparecia mais bêbado que de costume e não conseguia subir as escadas. Mijava nas calças sentado no corredor, gritando o que poderiam ser tanto blasfêmias quanto sonetos de Camões - era impossível distinguir. Por alguma espécie de milagre específico para almas decaídas, nessas circunstâncias seu indestrutível radinho de pilha só tocava Agnaldo Timóteo, o que sempre o fazia despejar sobre aquela poça de álcool e urina um rio de meio-litro de lágrimas abundantes. O choro farto e soluçado causavam também alguma compaixão nos vizinhos. Só alguma. Era a única situação em que estes lembravam que o velho saco de merda, como o apelidara Aretusa, a Impetuosa do 303, já fora um agradável colega de condomínio. A conversa boa e a considerável sofisticação - era o único do bloco que oficialmente já havia pisado numa universidade (agronomia, trancou quando casou, no sexto período) - colocaram-no noutros tempos numa posição de tamanha respeitabilidade que nas reuniões condominiais seu voto costumava ser seguido por, pelo menos, meia-dúzia, de modo que não era raro voltar das assembléias com pratinhos de bolos, coxinhas e outros quitutes que sempre dividia com a criançada do prédio - o que realimentava sua boa fama. Mas três anos são mil na convivência diária de um formigueiro e o espólio dessa dignidade toda era a insignificância percebida aos domingos. Era quando algum vizinho - que preferia fazê-lo em anonimato, ciente de que sua atitude era digna de reprovação pelos demais condôminos - deitava ao lado do montinho um pão com margarina e café-com-leite frio num copinho de criança, destes com tampa e biquinho, feito para as criaturinhas ainda incapazes de manter um copo sério em pé. O velho possivelmente tinha mais dinheiro em conta que seu benfeitor, mas a fome de solidariedade das pessoas havia sido alimentada durante tanto tempo com pão que qualquer outro tipo de ajuda poderia render uma congestão. Dona Germana apenas tolerava esse sinal de fraqueza dos colegas porque ver o velho ser tratado como mendigo causava-lhe íntimo gozo.

2 comentários:

  1. Adoro essas tuas histórias de "piá de prédio" (pode chamar assim, ou essa expressão se refere apenas aos de classe média - alta?)

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  2. Comece lendo o Ó, isso mesmo "Ó", (a letra).
    Depois diga se não tenho razão, se não tiver ao menos será inspirador. Aguardo ansioso novas postagens.
    Forte abraço.

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