segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ascensão e queda de um velho condômino - IV

Devia ser sábado pois fazia sol e a criançada toda estava na rua, ou melhor, vagando pelo condomínio. No verão - acho que era - é sempre assim. Os cupins e as crianças ganham asas e vão por aí, meio sem rumo, sempre em hordas. Então estas estavam lá, parece que jogando pedra nos morcegos que dormiam ressaqueados nas árvores mais copadas, quando ouviram um lamurio fino. Betinho pediu silêncio pra ouvir e todos começaram a farejar com os ouvidos o chão pra ver de onde vinha aquilo. Deram volta no guapezeiro do meio, mais dez passos, passa o boldo da Dona Filó, ali, debaixo da betoneira quebrada. Um gatinho! Nesse momento Claudinho torceu pra que todos pensassem como ele e brincassem de mirinha no bicho, quase falou, mas a prudência valeu-lhe, pois a piazada ficou comovida com a criatura. Guilherme tomou a dianteira e foi fazer festinha na cabeça do gato mas percebeu que a situação ainda não era permissível a carícias, então segurou e levantou o coitado com simulada grosseria. Teve pena, mas não poderia passar por bicha pros amigos. Erguido e exposto como um troféu, o animal gemeu mais alto que nunca e deixou evidenciada a debilidade que o fazia sofrer. Tá prenha! Olha, barrigão, deve ter uns dez aí. Põe ela de volta, imbecil, com cuidado! Eliminado por maus-tratos, Guilherme afastou-se mordendo os lábios de raiva. Beto, usando toda a experiência que não tinha com animais gestantes, pegou a gata no colo e levou-a pra perto dos prédios. Buscaram roupas velhas e leite, tudo muito bem escondido, fizeram uma caminha atrás do bloco B e passaram a apreciar o sofrimento da parturiente. Numa última cartada, Guilherme fez piada pedindo para a sofredora fazer respiração cachorrinho, no que foi prontamente incompreendido e mandado embora. Onde já se viu falar de cachorro numa hora dessas. O parto demorou a tarde toda. A mãe quase exauriu-se e os filhotes eram bolinhas de pelo e sangue. Eram tão nojentos que alguém até pensou se valiam tanto trabalho. Pareciam até os morcegos de mais cedo. De qualquer forma, lá estavam. Seis novas criaturas miantes. Sêo Hélio, o zelador manco, passou e viu o que acontecia. Estavam todos fodidos, a síndica ficaria sabendo. Anoitecia. Beto determinou que todos deveriam se revezar em turnos de sentinela. Dois conscritos por vez garantiriam a segurança até o amanhecer. O esquema de proteção funcionou perfeitamente até as 10 da noite. A partir de então imperava o toque de recolher imposto pelas mães. Jorginho, o encarregado da hora, subiu com a promessa de olhar pela janela, o que de fato fez com louvor até as 11, fim do seu período. A partir daí o ninho ficou desguarnecido. Mãe e filhotes dormindo, ninguém tomou o leite, até que são bonitinhos. Foi assim o último relatório. Durante a noite, as crianças eram crianças demais e dormiam fatigadas demais naquele sono pesado e sereno que só as crianças conseguem ter. Por conta disso, só os adultos ouviram uma madrugada inteira de gemidos de terror que vinham de algum lugar no vão dos prédios. Dona Filó odiava gatos e levantou às seis incrivelmente disposta a degredar os bastardos. Saiu de casa em pantufas de pano pra não fazer barulho e voltou sem tê-lo feito. Não eram nem oito da manhã daquele domingo cinzento quando, um a um, os piás foram chegando para ver como estavam os gatinhos. Muitos traziam víveres. No entanto, conforme iam se aproximando e percebendo a cena configurada, iam se juntando ao grupo de embasbacados. O chão pintado de sangue, um quebra-cabeças de tripas, perninhas, rabinhos e - claro - cabeças. Da mãe, nem sinal. Terror, terror. Estavam incrédulos e alguns sugeriram que deviam pegar o Guilherme, aquele doente. Fariam também dele mosaico, perninha cá, bracinho lá, cabeça. Viram só? Tem uma cabeça meio comida ali. Onde? Fernandinha passou, ia buscar jornal de domingo pro pai, grandão e pesado, só olhou, disfarçou. Ei, quem tem coragem de jogar nela uma tripinha?

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