Não sou Cassandra, mas tenho uma trágica qualidade: ouvidos caninos. Não, eu não tenho o maldito ouvido absoluto, que sinto vontade de duvidar existir, e minhas habilidades musicais são pífias. Pergunte-me o que é um sol maior e te darei uma resposta astronômica. Meus ouvidos caninos, e olhe, isso é uma expressão que inventei pra mim (embora possa e deva já ter sido inventada por outrem), são uma desagradável percepção dos sons. Especialmente sons miúdos, altas frequências. Desde criança consigo dizer se há uma televisão ligada em casa. Nas madrugadas mais tranquilas, sabia dizer se havia alguma nos apartamentos vizinhos. Não graceje, não falo de ouvir o som dos autofalantes da televisão, pois eu sei da televisão mesmo quando o volume está baixo demais para ser ouvido ou mesmo mudo. Simplesmente ouço o som que a televisão emite quando ligada. Som de aparelho eletrônico ligado, um piiii constante e irritante. Além da tv, há também aparelhos de ar-condicionado, computadores, e, talvez os campeões, nobreaks. Esses sons, que a maioria aprendeu a chamar de silêncio, pra mim compõe a sinfonia da tortura, em seu crescendo de intrusão. Para você ter idéia do tamanho do desconforto que sinto com esses sons, imagine que pra mim, o prazer de desligar uma televisão é comparável ao de tirar os calçados depois de um longo dia. Meus ouvidos gozam. Mas os momentos de prazer são raros. A maior parte do tempo, passo em busca de um silêncio quimérico, um desejo erótico pela ausência de som que agraciaria minha alma. Mas meus ouvidos caninos são tristes por saberem que, em vida, o silêncio é impossível. Por isso, quando quero paz, vou de canto a canto, procurando o melhor recanto para os ouvidos. Então, se algum dia você me surpreender dentro do guarda-roupas, não se assuste, eu estarei apenas lendo.
Conversa interna com a sacerdotisa
Há 4 anos
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