terça-feira, 14 de abril de 2009

O Marujo

A revista piauí promove um concuso literário mensal. É dada uma frase e você deve compor um texto em que a frase aparareça com algum sentido. No mês passado concorri com esse texto.

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O Marujo

Era fim de tarde e os últimos fiapos da luz vermelha do crepúsculo já se iam perdendo. O homem rude de expressão fechada entrou em sua casa e, executando o hábito adquirido há apenas um ano com a morosidade de quem o fez há trinta, passou um café forte e o tomou sem açúcar. Aposentado fisicamente por conta de uma hérnia de disco e moralmente pelo fato disso acontecer enquanto ainda possui braços volumosos e fortes, passa os dias remoendo as memórias do que sem querer foi sua vida.

Viajou o mundo todo, teve tantas mulheres quantas foram as noites solitárias em terras estranhas. De algumas destas, traz tatuagens, de outras, cicatrizes. Lembra-se de países que o mundo já se esqueceu. Não se sabe se apesar ou por conta disso, e a despeito do que povoa a imaginação dos sonhadores, nunca gostou de lugar algum que em sua existência peripatética tivesse conhecido. O único lugar de que gostava era exatamente o único lugar de onde fugira e pra onde prometeu jamais voltar. Réu confesso, entregou-se ao mundo como castigo auto-infligido. Pelo menos foi o que acreditou muito tempo atrás, mas durante três quartos de sua vida pensara toda noite, com uma religiosidade que não tem o maior dos cristãos em suas preces, que não passava de mais um ser feito desse repugnante medo e que tem a vida como algo que vale mais que a dignidade. Somente agora que as luzes dessa existência começam a fraquejar é que se dá conta de que a culpa e a vergonha de tê-la salvo fizeram-no enterrá-la fundo na culpa e na vergonha de nela sentir algum prazer.

Era esse o homem que sentava sozinho para tomar café amargo, pois havia vivido a vida inteira sozinho e apenas amargo é que poderia morrer. Decidido que estava a utilizar este tempo último que lhe restara simultaneamente com e sem saúde – o que só poderia ser o poder divino já anunciando que sua sentença estava lavrada – para pensar sobre si mesmo, desejava apenas matar o tempo antes que o tempo desse o troco. E se pensava em si não era por ter-se como a única pessoa que valesse o pensamento, mas por não ter conhecido ninguém mais. Abriu a mesma pequena mala de couro marrom com presilhas de cobre que usara em sua fuga quarenta anos atrás e a descobriu mais vazia que então. Encontrou fotografias de mulheres que talvez tivessem tido pra ele alguma importância. Lamentou não lembrar de nenhuma. Abriu algumas cartas e iniciou sua leitura, mas fazê-lo era como abrir um livro nunca lido em uma página qualquer: falava-se sobre pessoas desconhecidas com seus sentimentos desconhecidos. Viu um envelope velho, ainda lacrado e sem selo algum. Era certamente a mais velha das cartas. A letra parecia conhecida, mas não pôde se lembrar de quem era. Iniciou a leitura. Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Parou. Tomou mais um gole do café que já estava frio. Aconteceu, então, que pela primeira vez desde a esquecida infância, este parricida chorou.

Um comentário:

  1. Cartas...melhor mesmo é não abri-las. Melhor não tê-las. E nisso vai também a memória. Ah, se ela fosse tão concreta como as cartas! Tacava fogo nessa merda. Botava de quatro, fodia e depois metia o pé na costela. Porcaria. Vidinha de bosta. Meu corpo cansado e eu com todo esse saracutaco na cabeça. Botava fogo. Realmente.

    (comentário inspirado no Tio Graciliano)

    (minha revista não chegou. se chegar eu boto fogo)

    (ah, saracutado danado)

    Gostei do conto. =)

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